O Janela Internacional de Cinema do Recife reassumiu sua proposta de debater questões sociais e políticas através da sua seleção de filmes, sempre muito aguardada pela cidade.
A noite abriu com Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszmann (1981), que fala de uma greve e a crise de uma família, mas que também dialoga com as nossas ocupações e como esses movimentos dessa geração atual vai nos afetar. E tivemos a vaca existencialista de Tião em Animal Político, que vai fundo na ironia para refletir uma passividade que nos faz tão mal e que atravessa séculos. Para encerrar o dia em um misto de desolação e esperança Ken Loach vem e nos mostra que os afetos possuem uma dinâmica muito própria para lidar com as humilhações impostas pelas injustiças sociais. Eu, Daniel Blake, vencedor da palma de ouro em Cannes encerrou a abertura do Janela e foi precedido por O Delírio é a Redenção dos Aflitos, exibido na Semana da Crítica em Cannes e dirigido por Fellipe Fernandes. O curta mostra a luta de uma mãe em busca de um conforto (literal e não-literal) para si e para a filha depois que é forçada a sair de um prédio condenado.
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A programação completa do Janela Internacional de Cinema
Na apresentação dos filmes, o cineasta e produtor do Janela Kléber Mendonça Filho fez menção às escolas ocupadas (mais de mil até a edição deste post), a importância de levar filmes que critiquem/debatam o atual estado das coisas e o descaso da prefeitura do Recife com o Teatro do Parque, fechado há mais de seis anos. É boa a sensação de estar em um festival que não se isenta e isso é correspondido pelo público, que gritou e aplaudiu como se estivesse ali para, também, fazer política. E estavam. Desde a primeira edição o Janela tem se preocupado em dialogar, em primeiro lugar com a cidade, e a partir daí traçar percursos de debates com filmografias de várias partes do mundo. Cada qual com suas questões, todos esses filmes tensionam diferentes perspectivas de temas que são urgentes.
Nessa proposta, Animal Político, de Tião, tira o espectador da zona de conforto desde o primeiro minuto. Surge na tela uma vaca urbana em crise de identidade. Depois de uma vida confortável, com compras no shopping, bons restaurantes, academia e encontrinho com os amigos, o gigante ruminante decide partir em uma jornada de autoconhecimento. Larga tudo e vai para o campo, deserto, tudo em busca de respostas para um vazio que não sabe explicar.
Exibido no Festival de Tiradentes e no Festival de Roterdã, Animal Político é o primeiro filme de Tião após os curtas Muro (2008) e Sem Coração (2014), em parceria com Nara Normande, ambos exibidos no Janela de Cinema e premiados em Cannes, na Semana dos Realizadores. A ideia de colocar uma vaca e não uma pessoa em destaque na narrativa serviu para causar o choque de ter que nos confrontar com nossa própria natureza. O fato da vaca ser gigante, pesada e com uma cara complacente quase irritante foi outra boa saída para essa ideia do confronto diretor-espectador.
Filmado em tom irônico, quase jocoso, Animal Político se insere dentro dos filmes-ensaio que estão sendo feitos em Pernambuco, a exemplo de Brasil S/A. É uma tentativa de sair da trama tradicional do cinema para encontrar novas formas de tratar questões políticas. Mas é também um belo exercício cinematográfico – o passeio da vaca por tantos lugares inusitados é bonito demais de se ver. O uso da ironia por parte do diretor, no entanto, funciona como uma armadilha por frustrar expectativas. É que estabelecido o tom da linguagem, parece existir uma busca por artifícios para manter o interesse do público naquela jornada, seja fazendo referências a autores como Dostoiévski e Kant, seja a cenas de clássicos como 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Kubrick. Preso nessa cadeia de eventos, ficamos impassível.
O momento disruptivo do longa é o trecho batizado de “A Pequena Caucasiana”, filmado em tons vintage, que mostra uma garota branca presa em uma ilha após um naufrágio. A jovem burguesa personifica centenas de anos de privilégios que se veem esvaziados agora que sua maior preocupação é tentar sobreviver. Isolada, ela conta com apenas um livro, o manual da ABNT. A referência a esse conjunto de normas serve como uma crítica a um vazio provocado pela arbitrariedade de regras – não há criatividade ou poesia no mundo regido por contagem de espaçamento entre linhas.
No retorno à trajetória da vaca, Animal Político deixa claro que o isolamento une a caucasiana e a vaca. Mas esta última confronta sua própria condição enquanto a garota parece “fazer de conta” que vive uma incongruência existencial: branca, racista e opressora, é um embrião isolado de uma elite violenta e opressora. Como outras produções que serão exibidas no Janela, o filme de Tião chega para nos meter numa jornada da qual é impossível sair impassível.