A sociedade brasileira se revela no modo como tratamos os índios, disse Ernesto de Carvalho, um dos produtores e correalizador de Martírio, que foi exibido na Mostra Competitiva do Janela Internacional de Cinema do Recife. O longa do diretor pernambucano Vincent Carelli é um poderoso documento do extermínio e perseguição feito pelo Estado brasileiro aos guarani-kaiowá e do descaso da sociedade civil a situação dessas pessoas. A recepção foi calorosa, com um debate igualmente lotado no Cine São Luiz.
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O longa mostra de forma clara, desde os primeiros minutos, que os índios da etnia guarani-kaiowá vivem um cotidiano de guerra civil nos dias atuais. Localizados no Mato Grosso do Sul, eles lutam contra a expulsão ilegal de suas terras históricas, sofrendo ameaças diárias de fazendeiros e seus capangas armados, de grupos de extermínio e de “empresas de segurança”. Os conflitos se dão também com as forças militares que empreendem violentas desocupações. Esse documento de Carelli vem nos dizer que a questão indígena do Brasil hoje é urgente e está acontecendo, mesmo que nos esforcemos em não dar atenção.
Excluídos de seus direitos mais básicos e sem acesso a serviços do Estado, os índios sofrem uma violência ainda maior: o desrespeito a seus costumes e culturas tem por objetivo tirar qualquer dignidade que ainda possuem. Em determinado momento do longa, em um assentamento à beira da rodovia, um jovem guarani mostra túmulos de seus parentes. Em outro ponto vemos que fazendeiros violaram cemitérios antigos, mantidos por gerações, por vezes desrespeitando demarcações de áreas feitas pela FUNAI.
No registro da violência cotidiana, Carelli também nos mostra que a indignação histórica nunca cessou e que há hoje um sentimento muito forte de pertencimento e fortalecimento das tradições por parte dos mais jovens. Lutando contra o genocídio e omissão do Estado, os guarani-kaiowá nos servem como provas vivas de um sistema falho, uma democracia bamba, que exclui da sociedade seus habitantes originais. Em uma cena de assembleia de índios realizada nos anos 1970, registrada por Carelli, um indígena Kaiowá diz: “o que tá pegando a gente é o capitalismo”. A frase diz muito sobre as motivações, muitas vezes disfarçadas em um discurso legalista do papel da terra, de políticos e agroempresários. O dinheiro sempre derramou sangue de índios no País.
A história de Carelli é a história da luta contra a violência aos índios. Indigenista e documentarista ele é o criador do projeto Vídeo nas Aldeias. Seu primeiro filme, Corumbiara, foi fruto de um processo de pesquisa de duas décadas e que mostrou o genocídio de três povos indígenas, os Akuntsu, os Kanoe e os “índios do buraco”, misteriosos sobreviventes de uma etnia de Rondônia. O trabalho de empoderamento que fez nas aldeias foi importante para munir Martírio de um novo olhar. O diretor formou índios para o uso de câmeras, que agora pareciam servir como arma contra a intolerância e truculência. Em uma passagem bastante dura vemos um ataque de pistoleiros a um pequeno assentamento, sem cortes nem edição.
O longa de Vincent Carelli existe para incomodar, desde o título, e perturbar uma sociedade omissa e adormecida aos problemas dos índios. Mas também aponta uma perspectiva histórica. A história desse martírio vem, pelo menos, desde a Guerra do Paraguai, quando o governo brasileiro tirou dos guarani terras para cultivo do mate. Esse processo violento se agrava durante a construção da política indigenista brasileira que teve como intuito a “aculturação” das populações indígenas. Tudo isso foi crescendo até desembocar em uma sociedade racista e que sempre desumanizou os índios e que serve aos interesses do agronegócio.
Carelli traz imagens poderosas como prova: policiais truculentos, fazendeiros de fala mansa justificando a guerra contra os índios e um circo armado no Congresso Nacional, quando o lobby dos fazendeiros chegou com violência na tentativa de trazer para os políticos a prerrogativa de demarcar as terras. Mas nada é tão sintomático do que a imagem de parlamentares assustados com a chegada de índios à Câmara dos Deputados. Tão revoltante quanto patético. Ainda durante o debate, o correalizador Ernesto de Carvalho nos lembra da mais importante lição deixada pelos indígenas: “a noção que os Guarani-Kaiowá trazem é que o espaço público é sagrado e o sagrado é público”.