Tudo começa com um teclado sintético, seguido do choro da sanfona que se incorpora às batidas do piseiro. Em seguida vem um triângulo discreto e um som eletrônico. E enfim temos “Eu Digo Não”, música que abre o álbum Quem Mandou Chamar?? do cantor e compositor pernambucano Jáder. A mescla de elementos da primeira faixa já dá uma prévia do que o artista construiu ao longo do disco. Introduzindo os trabalhos com uma sofrência dançante de quem não quer perdoar uma desilusão, o artista chama o ouvinte para falar sobre as diferentes faces do amor. E faz isso de uma maneira vibrante, plural, desafiando padrões heteronormativos ainda associados à cena de forró no Brasil.
Lançado em meados de junho, Quem Mandou Chamar? marca a estreia de Jáder, também vocalista da banda Mulungu, em carreira solo. O álbum teve produção musical de Guilherme Assis e Barro.
Inicialmente, o artista independente planejou músicas que bebiam do forró tradicional nordestino para a composição do repertório. Porém, o ouvido que virou fã do cantor Zé Vaqueiro, colocou a tradição na gaveta e levou a decisão de que o piseiro predominaria nas faixas. Tal predominância, ainda assim, não limitou Jáder, que inspirado no melhor que o estado tem para oferecer musicalmente, de Elba Ramalho à Musa do Calypso, consolidou um disco que emana o que ele mesmo chama de “música pop latina”, com forró, piseiro, brega e reggaeton.
Na segunda faixa, “Lua Escorpião” anuncia a busca por uma paixão. A guitarra forte que acompanha o teclado sintético embala um refrão que tem tudo para ficar na cabeça, quando canta “Me beija / Me beija / Beija o meu corpo todo / Fode a minha cabeça.“
Com potência e surpresa, a terceira faixa homônima é um dos muitos pontos altos que Jáder alcançou. Os primeiros segundos já trazem o interlúdio “BUTANO PRA DESCER”, que é nada menos que um áudio enviado pelo emblemático Riquelme na Batera, avisando que a “virada” que vai fazer em um trecho será potente. E assim acontece na faixa que assume: “Peito bateu mais do que a virada de Riquelme“, e é responsável pela participação mais inesperada e bem construída da sequência. A bateria de luxo divide o protagonismo com a voz de Jáder, e fica muito difícil não achar semelhança com o forró eletrônico do Aviões do Forró, ainda assim sobressaindo o estilo único, versando sobre o desejo.
“Emoji de Beijo” dá continuidade, começando com uma sanfona manhosa, junto de um triângulo e a impressão de uma zabumba, que faz crer na chegada de um segmento mais tradicional, lembrando um xote Gonzagueano. A primeira estrofe cantada por Jáder muda os ares, trazendo uma guitarra, que moderniza a faixa e torna o xote mais pop. Aqui, um ser culpado lamenta pela perda de seu amor, e declarações e convites serão feitos por mais uma chance. “Eu Gosto” chega provando na letra e videoclipe para mostrar que, até quem é desapegado, gosta de uns dengos, uns apertos e pode ceder às paixões. A faixa apresenta uma linha tênue (se existir) entre o forró e o piseiro. A sensação do primeiro estilo em sua forma mais tradicional aparece pela sanfona constante e pelo coro feminino que acompanha o refrão, não tirando o espaço dos elementos eletrônicos tão característicos do segundo estilo presente.
“Falso Encanto” vem na sequência para tirar o fôlego. Nos primeiros momentos de sua reprodução, o toque de um brega raiz é explorado. A sensação que dá é a de que o Conde Só Brega vai cantar a qualquer momento, mas Jáder e a artista pernambucana UANA dão conta do recado nesta parceria. A letra melancólica, digna de término, é embalada por uma composição instrumental (destaque ao saxofone) envolvente e dramática como um bom brega entrega, alcançando o poder de satisfazer quem está ouvindo e levantar casais para dançar colado.
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A seguir, “Pele com Pele” namora o reggaeton, com guitarra suave e constante, esbanjando sensualidade assim como a letra, que escancara o desejo e declara Por favor não me impede / Eu vou gritar até eu ficar rouca. Logo após, “Se Lascou” volta com o piseiro em destaque. Quem se lasca neste caso é o peito de Jáder, que no videoclipe e letra lamenta o término de uma paixão fulminante. A seguir, “Larga Esse Boy”, que também é presente no repertório do álbum Orgia de Johnny Hooker, reforça a parceria com um piseiro eletrizante e letra pegajosa, daquelas que se espera o refrão para cantar com força. A faixa compartilhada se encaixa bem na proposta do álbum de Jáder, ao falar sobre um amor que abala o mundo, mas já pertence a outro alguém.
“Te Dar” fecha o álbum com chave mais que dourada. Quem começa aqui é a sanfona num ritmo típico do forró pé-de-serra acompanhada de um coro que repete parte do refrão. Assim que Jáder começa a cantar, a veia pop é carregada e o eletrônico incorpora o instrumental que é cheio de nuances. Não satisfeitos pela mistura inesperada, a parceria com a artista pernambucana Jéssica Caitano se concretiza com uma embolada quase que de supetão, na voz forte da cantora.
O primeiro passo nesta nova fase de Jáder em carreira solo se revela assertivo e ousado. A releitura do forró e piseiro feita pelo artista independente e LGBTQIA+ é um investimento de coragem e protesto. Com Quem Mandou Chamar?? Jáder decide falar de seus prazeres e desejos, furando a bolha do protagonismo do homem “másculo” e hétero que ainda predomina na cena musical de gêneros como o forró. A versatilidade, a exaltação da regionalidade, e a quebra de paradigmas premiam Jáder no pontapé inicial de uma carreira promissora e expressiva na música pop brasileira.
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