Por Isabel Lucas
Miró da Muribeca é o nome de um poeta alegrista. Quem o conhece sabe o que isso quer dizer. Faz poesia na rua, próxima da crónica social. Satírica, mordaz, às vezes triste, com raiva. Miró vive no Recife e é um poeta, “um preto filho de analfabetos”, como diz, que não cumpriu o sonho da bola, mas descobriu a arte com Carlos Drummond de Andrade. Solitário, sem casa, é um deslocado como os protagonistas de Vidas secas, romance do alagoense Graciliano Ramos que nos leva para um território de secura e mudez. Dos que fogem pelos sertões. Para sobreviver ou à procura das palavras da cidade. “Minha mãe era alinhada, gostava de vestidos coloridos, era boa dançarina. Meu pai era o maior dançarino de todos. Viu ela, ela viu ele. Eu fui uma transa de Carnaval. Meu pai transou com minha mãe e eu nasci, por isso sou assim um pouco alegre.” Ao dizer isto João Flávio quer reforçar a sua identidade marcada pelo acaso, ou, como diz, “pelo sem querer”. Tem 58 anos, nasceu no Recife, uma das maiores cidades do Nordeste do Brasil, é poeta de rua, dos mais celebrados do país, dos que mais vendem; improvisador, fazedor de uma linguagem que se tem ajustado ao desajuste da sua vida. Nunca conheceu o pai, é filho único, foi um menino negro da periferia que sonhou ser jogador de futebol capaz de passes como os de Mirobaldo, o sertanejo de Aracaju que jogou em Portugal na década de 1970. Falhou no teste da bola, ainda quis ser jornalista, mas não passou no vestibular. Decidiu ser poeta. Nunca mais se soube de João Flávio Cordeiro da Silva. Ficou Miró — em homenagem a Mirobaldo — e Muribeca, o nome de um aglomerado de edifícios para pobres onde cresceu e que hoje é cidade-fantasma junto a uma lixeira nos arredores do Recife.
“Quando eu era menino, negro pobre e branco classe média morava tudo perto e todo o mundo jogava futebol na rua. Um dia, um cara se machucou, e eles, os brancos, perguntaram: ‘Quer entrar aqui, neguinho?’ Entrei”, diz, dicção perfeita, pausado, como a declamar a própria vida que saiu dos eixos do anonimato e do trabalho braçal, o caminho mais certo dos pobres, negros, filhos de analfabetos, como ele. Miró é conhecido em toda a cidade do Recife. Caminhar com ele cinco minutos pelas ruas do centro é uma demora. Acenos, pessoas que gritam do outro lado da rua, “Ei, Miró”, que sorriem ao vê-lo. Ele é uma celebridade sem casa e está a passar pela terceira cura de desintoxicação de álcool. Nesse dia teve licença para sair da clínica onde vive há três meses. Um lugar para dependentes com dinheiro. Fica no Sítio dos Pintos, bairro de gente de baixo rendimento, pontuado por moradias de luxo, com água potável, mas sem rede de esgotos, onde 14% da população é analfabeta.
Miró transfigura-se quando o portão se fecha. “Estou tão feliz! Preciso de rua, sou da rua.” Conta que não bebe cachaça há 70 dias. “Antes, às sete e meia da manhã, pedia uma cerveja e um copo de cachaça.” Não conta nenhum segredo. Todos sabem quem é Miró. Começou a beber em excesso há seis anos quando a mãe morreu. Esteve 45 dias só a beber, “sem comer nem uma azeitona”, e quando o encontraram acharam que ia morrer. A informação é despachada em escassos minutos enquanto tira um bloco e uma caneta do saco que leva ao ombro, por cima da túnica africana. Segura-o como se lá dentro estivesse tudo o que tem na vida.
“Drummond me ensinou que não há poeta sem caneta.” A caneta segue na mão. Parece ajudá-lo a pôr ordem no discurso que tende a dispersar-se. Diz que é da medicação. “Quando eu era menino, na década de 1970, trabalhava em casa de um pessoal de classe média alta. Lavava o carro deles, comprava o jornal para eles, os cigarros. Era uma casa em que só tinha artistas e eu não sabia o que era um artista. Eu era o escravo amoroso deles. Quando digo que era um escravo amoroso, é porque eles gostavam de mim. Nunca fui tratado como alguém que está ali para fazer coisas e depois vai embora. Eu ia andar de bicicleta com eles, me davam roupas, comia com eles. Eu era um filho preto da família. Dei alguma sorte aí. Todo o mundo lá era artista e eu fui crescendo no meio deles. Um dia, o poeta Maurício Silva, que é o meu irmão preto que eu não tive, moreninho como eu, disse para mim: ‘Miró, tu sabe o que é uma poesia?’ Poesia?! ‘Tu já leu um livro?’ Não, eu gosto é de Roberto Carlos. Ele: ‘Ai, meu deus. Vou-te dizer o que é uma poesia’. E recitou: ‘Farda verde verde verde verde/ Praça verde verde verde verde/ e o coração bate continência a toda mulher que passa’. ‘Entendeste, Miró?’ Sim. É um cara paquerando ela, não é? ‘É isso.’ Aí a poesia virou doidice. Eu queria imitar, pus-me a imitar. A minha mãe ouvia, vinha ao meu quarto perguntar: ‘Fumou maconha com a classe média?’. Que nada, eu sabia o que era, mas não tinha fumado, não. Passou o tempo e fiz o meu primeiro poema.”
Foi nessa casa “da classe média” que leu Carlos Drummond de Andrade, autor que põe nos píncaros da poesia e passa o tempo a citar. No entanto, foi o poema que ouviu de Maurício que ficou a ecoar. “Gostava do som”, explica. Seria preciso acontecer qualquer coisa na sua vida para conseguir fazer algo parecido. Pede para parar no lugar onde isso aconteceu, a Ponte Duarte Coelho, que liga o velho edifício dos Correios e a sua torre com relógio ao Cinema São Luiz, atravessando o Rio Capibaribe a que João Cabral de Melo Neto dedicou o longo poema O rio, em 1986: “(…) Sou viajante calado,/ para ouvir histórias bom,/ a quem podeis falar/ sem que eu tente me interpor,/ junto de quem podeis/ pensar alto, falar só./ Sempre em qualquer viagem/ o rio é o companheiro melhor. (…)// Isso favorece a interferência de outros narradores./ Parece que ouço agora que vou deixando o Agreste:/ Rio Capibaribe, que mau caminho escolheste./ Vens de terra de sola,/ curtidas de tanta sede,/ vais para terra pior,/ que apodrece sob o verde./ Se aqui tudo secou até seu osso de pedra,/ se a terra é dura, o homem/ tem pedra para defender-se./ Na Mata, a febre, a fome/ até os ossos amolecem./ Penso: o rumo do mar/ sempre é o melhor para quem desce.”
A estátua de Melo Neto está na margem direita do rio, no passeio dos poetas, entre outras estátuas de poetas do Recife. Miró da Muribeca passeia entre elas antes de se debruçar num dos muros da ponte, e já se percebeu que há nele um performer.
“Eu vinha aqui andando, com uma bolsa nas costas e passou um policial arrastando uma criança negra pela orelha. Me deu raiva. Olhei para os Correios e estava dando quatro horas. Sentei ali na beira do rio e escrevi esse poema, o primeiro poema da minha vida: “Quatro horas/ Quatro ônibus levando vinte e quatro pessoas/ Tristonhas e solitárias/ Quatro horas e um minuto/ Acendi um cigarro e a cidade pegou fogo./ Cinco horas/ Cinco soldados espancando cinco pivetes/ Filhos sem pai/ E órfãos de pão/ Cinco horas e um minuto/ Urinei na ponte e inundei a cidade/ Seis horas/ O Recife reza/ E eu voando pra ver Maria.”
O poema é dele, saiu em 1985, no primeiro dos 10 livros que publicou até agora, Quem descobriu o azul anil. “Gosto de títulos que tiram onda com o leitor. Na verdade, foi uma brincadeira com quem descobriu o Brasil, que é o mesmo que dizer quem foi que olhou para o céu primeiro.” É uma poesia oral, com sátira, crítica social, que canta o amor e não poupa o poder. Escarnece dos poderosos. “Eu me considero mais um cronista do que um poeta”, salienta. “Escrevo muito o que acontece na rua.
Escrevo para o cara que varre a rua; ele entende o que eu digo, o engenheiro entende o que eu digo, o psicólogo entende o que eu digo; não precisa ir ao dicionário, a minha poesia é totalmente fácil. São poucos os poemas que têm erudição, e, dos que têm, ela veio de Drummond. Foi o poeta que mais me pirou.”
Foi publicando sempre, com a ajuda de mecenas, empresas, vendendo os próprios livros. “Sou a minha própria livraria”, afirma. Transporta-os em sacos pelas ruas, para as oficinas de poesia que dá em teatros, festas de empresas, clubes de leitura. Recentemente publicou um volume que reúne os seus 10 livros, Miró até agora (Cepe Editora). Vai na terceira edição, 3 mil exemplares vendidos. “Quem diria que um preto, filho de analfabetos… E nunca impus um livro a ninguém, compra quem quer. A força das minhas vendas é a minha oralidade, como eu recito os poemas”,
diz, entre expressões de alegria e uma sombra nos olhos, o homem que já sonhou ser como Djavan, que ainda canta como ele e que usou rastas como ele. “Eu era igual a ele. Um dia um policial me mandou parar na rua, perguntando se eu tinha baseado. Eu disse que não. Ele viu que não. Eu confrontei ele e ele deu em mim, uma surra de 20 minutos e mandou que tirasse a roupa na rua. A minha poesia mudou. Passei a ter alguma raiva. Mas sou um alegrista. Miró, o alegrista. Se perguntar, toda a gente sabe quem é.”
O texto faz parte do livro Viagem ao país do futuro, cujo trecho foi gentilmente cedido para divulgação pela Cepe Editora.