Iracema – Uma Transa Amazônica
Jorge Bodanzky e Orlando Senna
Brasil, Alemanha Ocidental, França, 1975, 1h31. Drama. Distribuição: Gullane+
Com Edna de Cássia, Paulo César Pereio
“Onde tem madeira, tem dinheiro”. Síntese perfeita da concepção de progresso entre os que defendem a exploração dos bens naturais em prol do desenvolvimento econômico, a frase do personagem Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio) pode ser encarada como um fantasma. Fantasma que atravessa, há séculos, as relações sociopolíticas brasileiras, principalmente as travadas nos rincões do país. Uma fala surpreendentemente atual (outras, bem mais graves, são ditas a plenos pulmões nas plenárias do Congresso Nacional). Após 50 anos da sua produção, Iracema – Uma Transa Amazônica chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (24), numa versão restaurada em 4K, com distribuição da Gullane+.
Rodado em 1974, em meio à ditadura militar, o filme foi realizado aos moldes do cinema de guerrilha. Em um fusca, os diretores Jorge Bodansky e Orlando Senna, além do produtor Wolf Gauer, partiram de São Paulo e seguiram a cortar as entranhas do país até Belém, de onde seguiram para a Transamazônica, percorrendo o vasto trecho em construção no Pará. Concebido no governo militar de Emílio Médici, o projeto inicial da rodovia seria ligar o Atlântico ao Pacífico em uma estrada que se estenderia por 8 mil quilômetros. O utópico plano, obviamente, não chegou sequer perto da ideia primeva.
Diante do teor altamente documental do filme, Iracema se tornou icônico pela sua simbiose com a ficção. A alcunha “docudrama” é costumeiramente utilizada para definir a obra de Bodansky e Senna. No fio de narrativa ficcional existente no filme, o personagem Tião Brasil Grande é um caminhoneiro do Sul, retrato do patriota que é a favor do progresso a todo custo (e que hoje, penso cá com meus botões, seria defensor de trumps e bolsonaros). Numa noite, conhece Iracema (Edna de Cássia), adolescente local de apenas 15 anos que tenta ganhar a vida se prostituindo. Juntos, percorrem parte da Transamazônica, contracenando com moradores reais, à beira da estrada, além de outros personagens interpretados por elenco profissional. O resultado é um filme-denúncia cujo realismo se sobressai em tela.
Imagens da floresta em chamas, árvores desmatadas, o comércio ilegal de madeira, violações que atravessam a natureza e os corpos daquelas pessoas exploradas pelo ideal de milagre econômico. Tanto sufocamento que Teresa (Conceição Senna) pretende pegar uma carona e ir para São Paulo. “Não quero ficar plantada aqui”, diz ela a Iracema. O verbo utilizado é simbólico. Oprimidas pela falta de oportunidades, quantas pessoas não foram e ainda são desenraizadas de seus locais de origem e buscam no Sul do país algum arremedo de vida digna?
Neste road movie banhado de estagnação, as mulheres se mantêm presas ao meretrício, sem perspectivas de mudança de vida. Como é dolorosa a cena do reencontro entre Tião e Iracema, ao final do filme. As marcas do tempo no corpo da garota, agora mais velha, mas ainda sim tão jovem. Enquanto o caminhoneiro aparece limpo, bem vestido, Iracema está totalmente suja, sem um dente e bêbada ao lado de outras colegas de profissão, à beira da estrada. Edna de Cássia, que nunca tinha pensado em atuar e foi descoberta pelos diretores durante pesquisa de pré-produção do filme, funciona como protagonista pela naturalidade de sua performance, até mesmo beneficiada pela inexperiência diante das câmeras (reforça a insegurança de Iracema, tão jovem, frente à dura realidade que a cerca).
Numa das cenas mais impactantes do filme, um grupo de pessoas é comercializado para trabalho análogo à escravidão numa fazenda; eles terão suas carteiras de identidade retidas pelo dono do local. Ao vasculhar tantas vísceras sociais do Brasil da década de 1970, Iracema – Uma Transa Amazônica foi censurado pelo governo militar no seu ano de lançamento. Quando liberado no país, em 1980, a obra foi premiada no Festival de Brasília nas categorias de Melhor Filme, Montagem, Atriz e Atriz Coadjuvante. Um documento pungente do nosso país que, com o relançamento, precisa ser conhecido por cada vez mais pessoas.

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