Um bar que lembra o circuito gay underground brasileiro é o cenário para o drama romântico Inferninho que tem como protagonista a proprietária trans, Deusimar (Yuri Yamamoto), e seu amado o marinheiro Jarbas (Démick Lopes). O longa cearense Inferninho – o título internacional é My own private hell – nasceu como dramaturgia para teatro, e estava destinado a ser adaptado para série de televisão após passar pela primeira edição do Laboratório de Audiovisual do Porto Iracema, em 2013. Ao longo do processo converteu-se num longa-metragem. Destaque na primeira mostra de cinema de Tiradentes, o filme é uma parceria entre o coletivo Alumbramento Filmes, Grupo Bagaceira de Teatro e Marrevolto Filmes, dirigido por Guto Parente e Pedro Diógenes. A produção já foi exibida em diversos festivais como Mix Brasil, Roterdã e está sendo comercializada na Berlinale deste ano.
O ambiente escuro, a mobília velha e brega, localizado num lugar ermo de uma rua escura, contribuem para criar a atmosfera de refúgio alternativo do local que é frequentado por clientes que vivem uma realidade paralela, uma solução fugaz para a opressão da vida cotidiana. O clima se adequa como uma luva ao conceito de presente nostálgico que Jameson evocou para falar de obras como Veludo Azul, de David Lynch: tudo ali é nostalgia, é reminiscência de um passado recente que na verdade nunca existiu da forma que é representada ali, como uma bricolagem de estilos que se manifesta nas roupas, mobílias, músicas e até na expressão de sentimentos. Deusimar é uma mulher discreta, à moda antiga, moralista, e sua composição contia referenda esses valores – ela nunca saiu dali, o bar é uma herança de família, seus trajes são bastante tradicionais, distante de uma dama da noite. Sua delicadeza desaparece no trato com os funcionários, extremamente mesquinho e patriarcal. Sabemos, entretanto, pela relação das pessoas que a própria casa noturna, está fadada a desaparecer desde a primeira cena, pois se trata de uma forma de relação afetiva, na vida e nos negócios, que não consegue mais ter seu espaço no mundo contemporâneo.
A relação amorosa de Deusimar e Jarbas é o movimento disruptor que transforma o cotidiano do lugar e a vida dos funcionários Luiziane (Samya de Lavor), a cantora do bar, Coelho (Rafael Martins), o garçom e Caixa-Preta (Tatiana Amorim), a faxineira, que por sua vez vivem nesse universo paralelo sem questionar em profundidade sua obsolescência. Inferninho foi rodado durante 12 dias no Ateliê Rural Alpendre, em Cascavel, onde foi construído o ambiente do bar, em que se passam todas as cenas. Nos sonhos de Deusimar, em que se mesclam anseios de aventura, libertação, reminiscências e desejos surgem como cenas de filmes e anúncios de destinos paradisíacos que são comercializados como autênticas promessas de felicidade pela mídia, em projeções de chroma key, que acentuam o seu caráter de impossibilidade, de consumação. A superficialidade, no entanto, envolve sentimentos profundos.
Essa encenação do real corresponde a uma espécie de segunda natureza, criada pela sociedade tecnológica, e conceito criado por Hegel, mas também explorado por Jameson para referir-se a obras de conteúdo distópico, mas que não necessariamente correspondem a filmes de ficção científica. Ela está presente em obras como O fundo do coração, de Coppola, por exemplo. O artificialismo emerge como escape, mas também como único caminho para encontrar a verdade, a realização. A onírica Las Vegas em luzes de neon de Coppola aqui é o inferninho de Deusimar, e o lugar comum de um romance banal referenda a transgressão, a mulher que busca um amor e uma identidade de gênero que foi corrompida pelo sistema, em uma casa noturna que será substituída por arranha-céus e fachadas de progresso de vidro temperado. O excesso de cores, quase surreal, incita ao delírio, à permissividade. O francês Baudrillard sustentava que quando o real já não é o que era, e a nostalgia então assume todo o seu sentido, simulação e simulacro servem para experenciar uma estratégia de real, de neo-real e de hiper-real.
As relações de gênero homoafetivas são vistas aqui como referência de pureza e de ingenuidade, em que pese o ar lascivo do inferninho, expressão usada para designar bares de prostituição e de shows eróticos no Brasil. Alguns desses locais tendem a mesclar públicos de diferentes sexualidades, tendência que é mais comum na América Latina do que na Europa e Estados Unidos, em que esses limites são mais rígidos e intransponíves. A noção da mulher trans e do mocinho gay como ideal de integridade moral numa sociedade que perdeu o controle de seus instintos e da ética vem surgindo de forma discreta em outras obras. No Brasil, certamente, o precursor foi Chico Buarque, com a canção Geni e o Zepelin, mas nas obras audiovisuais ela está presente até mesmo em narrativas policiais como Cães de Berlim, da Netflix. Para sobreviver, entretanto, esses personagens, em algum momento, têm de negociar. Nada escapa à lógica do capital.