Sociólogo por formação, o diretor Iberê Carvalho observava com perplexidade e impotência os rumos que o Brasil vinha tomando desde 2015, quando, às vésperas da deposição da presidenta Dilma Rousseff, o país dava início a uma guinada extremista e conservadora, mais tarde selada com a prisão do presidente Lula e a posterior eleição de Bolsonaro. Foi naquela época que as fake news começavam a figurar no debate público – ainda que de forma incipiente se compararmos ao status de absurdo que assumiu no pleito de 2018, um dos mais violentos da recente história brasileira.
Em alerta por tudo o que vinha percebendo, o realizador sentiu a necessidade de articular isso nas telas e assim surgiu O Homem Cordial, seu segundo longa-metragem, que chegou aos cinemas no último dia 11. “A gente estava tentando mapear para que lado a gente estava indo, o que poderia acontecer se as coisas começassem a caminhar muito vertiginosamente naquela direção”, relembra ele, que escreveu o roteiro em 2016, em parceria com o uruguaio Pablo Stoll. “A nossa pretensão era botar uma lente de aumento em algumas coisas que estavam acontecendo, mas não eram, assim, tão cotidianas como vieram a se transformar.”
Agora, cerca de sete anos depois da criação do roteiro, o filme entra em cartaz nos cinemas em um momento no qual as discussões suscitadas soam não apenas atuais, mas urgentes. Pós-verdade, racismo, branquitude, injustiça social e violência policial são algumas das temáticas que atravessam a trama protagonizada pelo ator e músico Paulo Miklos. Ele interpreta Aurélio, líder de uma banda de rock fictícia, que se torna alvo de um linchamento na internet.
“Eu lembro que depois que a gente terminou de filmar, a montadora viu o material bruto e ela achou o filme exagerado”, revela o cineasta. “Depois passaram alguns meses, Bolsonaro foi eleito e a eleição foi muito violenta. E aí, quando a gente já estava montando, a percepção dela já era um pouco diferente. Ela já não achava tão exagerado. Depois de um tempo, quando o filme ficou pronto, a gente já tinha total consciência de que não, de que as coisas eram assim ou pior. E hoje eu acho até que ele é suave.”
Mesmo com um intervalo tão longo, entre a finalização do longa e o lançamento nas salas, para Iberê, O Homem Cordial encontra o público no momento certo. “Talvez, se tivesse saído no último ano do governo Bolsonaro, a gente não estivesse nem com estômago para tratar disso. Talvez a gente não estivesse nem com estado de espírito depois da pandemia, depois de tudo o que a gente passou, para ver esse filme e tratar dessas questões. Então, eu acho que sai num
momento perfeito, porque a gente já tem quatro meses aí que a poeira deu uma assentada”, contou em entrevista à Revista O Grito!.
Para pensar o Brasil e o crescimento do discurso de ódio nas telas, Iberê explica que procurou articular “algumas coisas isoladas e juntar tudo numa única noite”. Por isso, o filme funciona como uma espécie de road movie que adentra a madrugada pelas ruas de São Paulo. Mas um dos episódios decisivos para que a produção viesse a tomar essa forma, segundo ele, foi quando surgiu na internet um vídeo de Chico Buarque sendo assediado e hostilizado em um restaurante no Leblon por conta do seu posicionamento político, em 2015.
Desinformação versus o jornalismo que queremos
Em um momento no qual o debate público orbita em volta das discussões provocadas pelo PL das Fake News, que prevê medidas para o combate à desinformação nas redes sociais e responsabilização das plataformas, a estreia do longa no circuito comercial serve como uma luva. Mas as discussões suscitadas vão além e passam, também, por entendermos que tipo de jornalismo nós temos e que tipo de jornalismo nós queremos e precisamos enquanto sociedade.
“A gente foi trazendo elementos que fazem parte de toda essa estrutura que está em volta da construção das versões, das narrativas. E um dos elementos é o jornalismo, a imprensa”, explica Iberê Carvalho. Ele avalia que hoje o que testemunhamos é uma crise da informação. “E você tem as coisas viralizando com uma velocidade muito maior nas redes sociais, que o jornalismo não dá conta”, aponta. “É tanta informação que a gente vive uma crise, não sabe onde buscar.”
Branquitude e racismo também no debate
No entanto, os impactos da desinformação na vida das pessoas ganham pesos diferentes a depender das diferenças de classe. É por isso que o enredo não se furta de abordar as injustiças e desigualdades sociais, ainda tão gritantes na sociedade brasileira e, para Iberê Carvalho, não tem como lançar qualquer olhar sobre esses temas sem falar da questão racial no país.
“Nossa desigualdade social está completamente vinculada a uma história escravocrata, de formação social e econômica do Brasil mesmo. E até urbanística. As nossas cidades ainda refletem muito uma escravidão recente e muito prolongada.”
“A gente se fez a pergunta ‘como tocar nesse assunto a partir do nosso ponto de vista, sem tentar se colocar como porta voz de um grupo que eu não pertenço?’”, indagou. Ao responder o questionamento, ele e Pablo Stoll entenderam que era melhor o protagonismo partir de um lugar mais próximo de ambos. “É um filme que fala do racismo a partir da branquitude”, afirma.
“Às vezes as pessoas falam ‘pô, mas você é um homem branco falando de racismo’ e eu falo ‘é claro, quem é que comete racismo?”, reflete o cineasta e sociólogo. “Se somos nós que estamos nesse lugar de opressor, nós temos que refletir sobre isso, falar sobre isso e tentar entender esse lugar”. Para o roteiro, ele contou com consultoria da atriz brasiliense Mariana Nunes, com quem discutiu também sobre a representação da negritude no cinema.
Sobre a escolha do título, O Homem Cordial, que remete ao conceito logrado por Sérgio Buarque de Holanda, em 1936, no clássico Raízes do Brasil, ele conta que a ideia surgiu, enquanto reescrevia uma das cenas, na qual a questão racial parecia querer gritar, apesar do tom complacente envolvido. “Todos os personagens tem alguma característica desse ser que age de forma passional, que é movido por afetos, mas que quando eu falo afetos não são afetos unicamente amorosos, mas afetos de toda ordem, inclusive o ódio. E esses afetos camuflam uma intolerância enorme assim.”
Um roqueiro que vive um roqueiro
Já a ideia de convidar Paulo Miklos para viver esse protagonista branco, líder de uma banda de rock brasileira que fez sucesso nos anos 1980, por mais surpreendente que possa parecer, não surgiu devido à trajetória artística do músico nos Titãs. O trabalho de Miklos em O Invasor (Beto Brant, 2001) foi o que chamou a atenção de Iberê Carvalho.
“Ele é muito misterioso, você olha para a cara dele na tela, você não sabe se ele está falando a verdade, se ele está falando a mentira; se ele é culpado, se ele é inocente. É dúbio né. O Paulo ele tem cara de vilão, mas às vezes age de forma amorosa”, comenta ele sobre o trabalho do músico, que conquistou o Kikito de melhor ator no Festival de Gramado, em 2019, pelo papel.
Enquanto isso, a inserção do rock nacional na trama foi algo que apareceu devido às raízes brasilienses do diretor, que simultaneamente procurava um protagonista anacrônico. “A gente queria um personagem que estivesse um pouco fora do seu tempo. E o rock não é mais o que era naquela época. O rock não é mais a voz da contestação da juventude. É o rap, é o funk”, conclui Iberê que também convidou o rapper Thaíde para compor o elenco.
Assista o trailer de O Homem Cordial.
Veja o Instagram do filme.
Leia mais entrevistas:
- Lauro, nome da Nova MPB, e o imaginário pernambucano como inspiração
- Um papo com André Antônio, diretor de “Salomé”: “o sexo e o tesão são algo centrais para a experiência subjetiva”
- Um papo com Jaloo: “Tudo é um gozo. Se estou conseguindo me manter aqui é porque, de alguma forma, estou gozando”
- Um papo com Hellena Maldita: “o mais importante foi ser porta-voz das pessoas positivamente vivas”