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Zhyar Ibrahim/Unsplash/Creative Commons.

IA no audiovisual ainda gera desconfiança e seu uso é tímido entre os cineastas pernambucanos

O modelo de negócios das big techs e a supressão de postos de trabalho são as principais críticas dos realizadores locais

“A inteligência artificial (IA) está transformando a indústria cinematográfica, tanto na produção de filmes quanto na experiência do espectador. A IA está sendo utilizada para automatizar tarefas, otimizar processos criativos e até mesmo gerar conteúdo, como roteiros e efeitos visuais. Ao mesmo tempo, a IA tem sido tema de diversos filmes, explorando suas potencialidades e riscos, e levantando questões éticas sobre o futuro da relação entre humanos e máquinas”. Essa é a resposta clara e aparentemente neutra e sensata do buscador Google, em sua resposta automática feita por IA, quando colocamos os termos “cinema” e “IA” no seu buscador. 

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O assunto que, hoje, é motivo de intensos debates envolvendo diversos aspectos da produção cinematográfica, no entanto, quando voltamos para o mundo da inteligência real, ele aparece de maneira bem menos equilibrada do que sugere o Google Search. No meio audiovisual as divisões são claras: para os grandes estúdios a IA é uma ferramenta incrível e maravilhosa, mas para boa parte da produção independente ela ainda é vista como uma ceifadora de postos de trabalho e uma ameaça a ser combatida. E, no meio do caminho, tem a turma do “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. 

Além disso, a IA tem gerado uma grande preocupação ambiental, pois para ela funcionar, as big techs precisam construir data centers gigantescos com grande consumo de energia e água para manter as máquinas devidamente climatizadas. Pensando nessas questões a Revista O Grito! resolveu ouvir algumas pessoas atuantes no audiovisual pernambucano para saber de que maneira elas estão encarando esse horizonte fascinante e assustador da IA.

Ladrões da criatividade

Chico Lacerda é cineasta, integrante do coletivo audiovisual Surto & Deslumbramento, e também professor do Centro de Artes e Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Ele  realizou, entre outros, os curtas Estudo em Vermelho (2013), Virgindade (2015) e o média-metragem Sonhos (2022), filmado em cores com uma câmera de 16mm. Chico nunca usou IA em seus filmes, mas indica que, por necessidade financeira, poderá usá-la para transcrição de diálogos e inserir legendas nos seus próximos trabalhos. 

O cineasta não vê a IA em si como um problema, mas ele critica fortemente o modelo de negócio e as práticas usadas pelas grandes empresas que estão dominando as aplicações de IA generativa hoje. “As IAs são, em muitos casos, treinadas com obras com copyright, mas sem remunerar os artistas criadores dessas obras, isso para mim é roubo da propriedade intelectual”, afirma. 

Ele faz um paralelo com os processos ocorridos durante a Revolução Industrial, quando o trabalho dos artesãos na confecção de um produto foi substituído pelas máquinas. “Esse maquinário surgiu a partir do trabalho dos artesãos, das pessoas que produziam material, então aquela inteligência de criar um sapato, por exemplo, foi de alguma forma roubada e substituída por máquinas que passaram a fazer o mesmo em maior quantidade”, diz. Segundo ele, o modelo de negócios da IA “não vai facilitar nosso trabalho, fazer com que a gente ganhe mais dinheiro ou fazer com que a gente tenha mais tempo livre. Era essa também a justificativa na Revolução Industrial”. 

Lacerda observa ainda o fato de as empresas estarem tentando impor o uso da IA na sociedade para justificar investimentos. “Elas criam demanda e estão expandindo um modelo econômico que não paga pela matéria-prima – o trabalho criativo – para maximizar seus lucros”. Segundo ele, “essas empresas estão automatizando a produção artística e criando a possibilidade de filmes inteiramente produzidos pela IA, incluindo roteiros, imagens, som, eliminando empregos e produzindo obras sem alma ou de baixa qualidade em cadeias industriais”, conclui. Como exemplos, ele aponta os artistas virtuais no Spotify e canais de YouTube com documentários de true crime gerados por IA — conteúdo consumido em massa sem envolvimento humano real.

“As IAs são, em muitos casos, treinadas com obras com copyright, mas sem remunerar os artistas criadores dessas obras, isso para mim é roubo da propriedade intelectual”.

Chico Lacerda

Essa também é a preocupação do cineasta Pedro Severien, autor do longa de ficção Fim de Semana no Paraíso Selvagem (2022). Para ele, o uso da IA vai atingir o setor tanto em termos artísticos quanto financeiros. “Ela vai afetar todas as produções audiovisuais em todas as esferas de produção, a produção independente, os filmes de baixo orçamento, como é o caso de Pernambuco, e também as grandes produtoras”, afirma.

Desde pequenas demandas de efeitos visuais até tratamento de vozes e mixagem, segundo Severien, recorrem hoje à IA e muita gente já está usando a ferramenta até mesmo para a escrita de projetos culturais. “O que é preocupante é a adesão à lógica da inteligência artificial, a de um universo supostamente neutro, desalmado e genérico. A expansão do seu uso nos processos criativos pode ir moldando a paisagem interior da imaginação e isso aponta para o mesmo tipo de adoecimento coletivo causado pelas redes digitais”, sentencia.

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“Consuella”, de Alexandre Figueirôa, usou IA para restaurar digitalmente fotos antigas (Foto: Divulgação.)

Esperar para ver?

O professor e pesquisador do audiovisual da Universidade Católica de Pernambuco Filipe Falcão não vê a IA com tanto temor, por uma razão muito simples: o cinema desde seus primórdios é um dispositivo tecnológico. “Se a gente fosse ser contra a tecnologia aplicada ao cinema, ainda estaríamos assistindo um filme como em 1895”, observa. 

Falcão acredita que tudo que envolve a IA exige um certo cuidado. “Eu acho que é uma tecnologia nova em todos os aspectos, então, na minha leitura, o seu uso precisa ser regularizado, para não se tornar algo apenas para gerar lucro fácil para as empresas do audiovisual. É preciso ver e analisar os impactos técnicos, criativos, morais para esse tipo de tecnologia”. Sobre o desaparecimento de diversos postos de trabalho e atividades por causa da IA, ele acredita que, como em qualquer avanço tecnológico, é normal que algumas funções sofram alterações. Por isso, é preciso ficar atento ao que vai acontecer.

Renata Pinheiro.
Renata Pinheiro está construindo uma caverna em IA para seu novo filme. (Foto: Raul Toscano/Divulgação).

A realizadora pernambucana Renata Pinheiro que já usou muitos efeitos visuais em suas produções, a exemplo do premiado curta Superbarroco (2008) e do seu último longa Lispectorante (2024), vai se valer da IA para o seu novo projeto. “No nosso novo filme que vai se chamar Cowboy Dourado, co-dirigido por mim, Sérgio Oliveira e o argentino Mauro Rodriquez, estamos estudando a possibilidade de usar a IA para a construção de uma grande caverna subterrânea que teria uma estética um pouco fantástica, mas usando uma referência real de uma caverna que existe na Nova Zelândia”.

Renata conta que Rodriquez está construindo essa caverna usando a IA para eles terem uma ideia do que é possível com dois atores dentro dela. “É muito difícil a gente conseguir filmar numa caverna real, elas em geral são de difícil acesso, tem também a questão da segurança, traslado de toda a equipe até o local, então se conseguirmos um bom resultado, vamos fazer essa composição de atores reais com a caverna criada pela IA”, justifica.

A cineasta não vê nenhum problema quando a IA possibilita se ter um cenário que não seria possível tê-lo em construção física a um custo que o orçamento da produção não suportaria. “Eu acho que a IA vem resolver essas questões, mas não sou a favor do seu uso para personagem, acho que a gente tem que preservar a profissão dos atores, especialmente porque ator significa figurinista, maquiador, preparador de elenco, uma gama de profissões que a gente sabe que são importantes”. 

“O uso indiscriminado dessas ferramentas traz riscos. Pode provocar uma padronização estética e enfraquecer a autoria, principalmente se forem usadas de forma automática, sem nenhum critério artístico. Além disso, muitos algoritmos carregam preconceitos estruturais — racismo, desigualdade de gênero — que acabam se reproduzindo nas imagens e histórias que geram”

Tiago Delácio

Uso consciente

No cinema de animação a IA abre também muitas possibilidades e ponderações como admite Tiago Delácio que, juntamente com seu pai o veterano realizador de animação Lula Gonzaga, realizou, em 2023, o curta Ciranda Feiticeira. A exemplo de Renata Pinheiro, Delácio acredita que a IA para o cinema de animação independente pode ser uma oportunidade, pois ela pode ajudar em várias etapas: storyboard, concept art, som, efeitos visuais, legendas, acessibilidade. “A questão é garantir que o uso da IA esteja a serviço da diversidade e da autonomia criativa, e não como mais uma barreira entre quem pode produzir e quem não pode”, diz.

Delácio pensa em usar IA futuramente, com consciência. Talvez para otimizar processos de som, melhorar acessibilidade com legendas automáticas, ou até mesmo experimentar linguagens visuais novas em projetos mais experimentais. Mas sempre com o cuidado de que ela complemente, nunca substitua, a criação humana. “O uso indiscriminado dessas ferramentas traz riscos. Pode provocar uma padronização estética e enfraquecer a autoria, principalmente se forem usadas de forma automática, sem nenhum critério artístico. Além disso, muitos algoritmos carregam preconceitos estruturais — racismo, desigualdade de gênero — que acabam se reproduzindo nas imagens e histórias que geram”, finaliza.

Esse é um aspecto que também chama a atenção de Renata Pinheiro. “Um problema que vejo com o uso da IA é os diretores perderem a vontade de ultrapassar seus limites, desafiar o próprio mercado, lançar vanguardas e fazer o que ninguém nunca fez”. A cineasta garante que nos dias atuais há muitos cineastas iniciantes que querem seguir uma carreira padrão e, para ela, a mentalidade de mercado é tão perigosa quanto a IA, porque a IA não vai além, sempre seguirá um padrão. “A arte sempre tem que estar usando a cabecinha humana e eu acredito muito nisso, até porque se eu não acreditar eu acho que eu entro em crise”, conclui.

Filipe Falcão está convencido que mais cedo ou mais tarde o uso ou não da IA irá refletir nas escolhas estéticas dos realizadores. “Talvez se possa ter diretores ou produtores que por uma questão  autoral dirão: não, eu não quero usar IA, como tem hoje diretor que grava o filme em película em vez de usar câmera digital, ou que faz todo o ajuste de cor na direção de fotografia. Dá mais trabalho, mas é uma questão  artística, autoral. 

O cineasta Gabriel Mascaro, realizador de filmes premiados como Boi Neon (2015) e mais recentemente O Último Azul (2025) tem uma relação tranquila com as novas tecnologias. Ele expressa preocupação com a questão da vulnerabilidade dos profissionais do audiovisual e como eles estão sendo rapidamente impactados por conta da IA. Contudo, aposta que essa transição obrigará os sindicatos e governantes a se mobilizarem para o desenvolvimento de uma política estruturante para não desamparar a rede de trabalhadores do setor.

Já do ponto de vista estético, por ser uma pessoa que se interessa em investigar e entender as linguagens das novas tecnologias, Mascaro demonstra até certo entusiasmo com a IA. Ele lembra do documentário de animação As Aventuras de Paulo Bruscky, finalizado em 2010, dentro da plataforma Second Life. “Na época, não tinha nem internet rápida no Recife e os cenários ficavam pela metade e aquilo terminou criando um universo muito interessante para mim, pois aprendi a lidar com a tecnologia em processo e como esteticamente isso podia virar parte da obra”.

Com a IA, o cineasta acredita que pode acontecer o mesmo. “Eu olho de forma muito curiosa o que está acontecendo. Acho que tem uma coisa muito inusitada, muito genuína e me interessa observar como as pessoas estão lidando e criando com a IA, como os recursos e linguagens estão sendo reapropriados”. Mascaro ressalta que se a passagem da película para o digital já foi uma grande revolução, com a IA isso vai ainda mais longe, pois está colocando em xeque todo o setor do audiovisual. “Estamos passando do cinema filmado para o não filmado, para ter um filme basta saber fazer um prompt criativo”, diz. 

Mascaro não acha que o cinema como conhecemos vai acabar, mas como a IA é hoje incontornável ele propõe aos artistas aproveitar o momento e em vez de recuar, entender e investigar a ferramenta se apropriando dela para experimentar e descobrir outras possibilidades artísticas e estéticas usando-a de forma criativa.

Gabriel Mascaro
Mascaro, diretor de O Último Azul, sempre demonstrou entusiasmo com as novas tecnologias. (Foto: Guillermo Garza/Divulgação).

Faca de dois gumes

Mas enquanto os cineastas avistam saídas para lidar com a IA em seu proveito, alguns profissionais do setor estão reticentes. O montador João Maria, responsável pela montagem de longas como Rio Doce/CDU (2013), de Adelina Pontual, Sujeito Oculto (2022) de Leo Falcão, Muro (2008) de Tião e Superbarroco, de Renata Pinheiro, vê com preocupação o futuro de sua atividade, sobretudo quando sabe da existência de editores de imagem em IA capazes de montar um audiovisual sozinhos. “Penso no uso da IA como uma faca de dois gumes, pois ao mesmo tempo que facilita bastante algumas etapas mais técnicas, creio que com o uso frequente das ferramentas com IA, estamos ‘treinando-as’ para nos substituir”, afirma.

Enquanto isso não acontece, João recorre à ferramenta para a edição de filmes, pois reconhece a utilidade da IA para certos casos. “Uso IA nos documentários desde a transcrição dos depoimentos dos personagens, para facilitar a edição do texto e construção do discurso, até a restauração e animação de fotografias danificadas, do material de arquivo”. Ele cita o curta Consuella (2023), de minha autoria (produzido pela Revista O Grito!), no qual aplicou a IA para melhorar a qualidade das fotos bastante danificadas pela ação do tempo. “Também a utilizo, tanto nos documentários quanto nas ficções, para limpeza de ruídos que comprometem as falas dos atores e depoentes”, completa.

O tradutor Evaldo Medeiros, radicado na França onde trabalha, responsável pela tradução para o francês e legendagem de filmes brasileiros como Ainda Estou Aqui (2024), de Walter Salles Júnior e O Agente Secreto (2025), de Kleber Mendonça Filho, afirma que o uso da IA para tradução, seja em textos ou filmes, está interferindo diretamente na qualidade dos resultados. 

Segundo Medeiros, agora é bastante comum os produtores e distribuidores, sob o pretexto de falta de verba, às vezes verdadeira, outras não, enviar para os tradutores uma versão das legendas feitas por IA. “Eles dizem: ‘nós já temos as legendas, precisamos só que você revise que coloque dentro dos padrões’ e vai querer negociar um preço bem inferior ao trabalho que o tradutor vai ter que fazer, porque revisar, na verdade, significa reescrever tudo. E o que acontece? Em função do preço que é pago não temos tempo para reescrever e então a tradução termina ficando com erros. Há também o fato de muitos tradutores estarem usando a IA em seus trabalhos, algo que pessoalmente condeno”.

Um outro grande problema é o fato dos produtores só estarem interessados em vender os filmes e a grande maioria, não tem a menor sensibilidade para as questões linguísticas. “Às vezes alguém entra em contato para que eu traduza só uma palavra. E eu digo  que preciso ver e ouvir como essa palavra está sendo dita porque no discurso oral sabemos que a entonação significa muita coisa, dependendo do contexto e a IA nunca vai perceber isso. Então ‘tudo bem’ para a IA vai ser sempre ‘tudo bem’, mas dependendo da entonação ‘tudo bem’ pode significar fazer ou acatar algo com prazer ou o contrário, fazer ou acatar o que é pedido, mas a contragosto e a IA não vai perceber isso”. 

Medeiros tem como outro exemplo a tradução simultânea por IA em festivais com filmes procedentes de diversos países onde se vê muitos absurdos nas legendas traduzidas. “É bom diretores, produtores, criadores terem essa consciência de que uma máquina não percebe o significado de um discurso oral, só faz correspondências”. 

E mais, a linguagem oral de rua evolui muito rapidamente e, dependendo de onde se está, uma palavra ou expressão pode significar uma coisa completamente diferente. “Um exemplo bastante típico é quando um personagem americano diz fuck me, que em português deve ser traduzido para ‘porra’ ou ‘que merda’, mas o tradutor simultâneo em IA, traduz para ‘me fode’ e, para o francês, em vez de ser traduzido para ‘merde’ ou ‘putain’ é traduzido para ‘baise moi’”, finaliza.

Edição: Paulo Floro.

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