Diamba: Histórias do Proibicionismo no Brasil
Daniel Paiva
Brasa, 192 páginas, R$ 99,90
Para alguns temas contemporâneos é preciso se ter uma abordagem didática quando decidimos falar sobre eles mesmo utilizando expressões artísticas como as histórias em quadrinhos as quais têm se mostrado, cada vez mais, um interessante veículo para abordar, de maneira leve e criativa, questões espinhosas do nosso cotidiano. E esse viés é assumido de forma clara e original pelo cartunista Daniel Paiva em seu mais recente trabalho, o livro Diamba: histórias do proibicionismo no Brasil, publicado pela Brasa Editora, uma obra mais do que oportuna para a atualidade.
A advertência da editora na contracapa do livro – “A guerra às drogas mata mais do que as próprias drogas” – não deixa dúvidas o quanto a empreitada de Paiva pode contribuir ao debate interminável e nunca resolvido da descriminalização/liberação da maconha no Brasil, um tema cercado por preconceito, ignorância e medidas autoritárias. Ex- editor da revista Tarja Preta e colaborador da revista SemSemente e do site maryjuana.com.br, o autor nos oferece em Diamba um cuidadoso trabalho de pesquisa histórica e sociocultural imprescindível para quem quer escapar do senso comum reducionista em torno do uso medicinal e recreativo da cannabis, alimentado inclusive pela mídia generalista.
Nos veículos tradicionais e conservadores o que mais se lê e se vê são informações desencontradas que mais confundem do que esclarecem. É nessa mesma mídia, e ainda em sites na internet, onde encontramos as cruzadas moralistas muitas vezes fundamentadas em argumentos científicos de origem duvidosa e opiniões estúpidas onde a regra é a repressão e o uso da violência como punição, lembrando que ela atinge, sobretudo, os grupos marginalizados e a população negra do país.
Daniel Paiva vai na contracorrente dessa lógica repressiva que só favorece os traficantes e as forças policiais e nos mostra como uma planta cujas propriedades e seu uso benéfico atravessa a história da humanidade sem causar nada demais na vida das pessoas, muito pelo contrário, foi demonizada e passou a ser perseguida no Brasil e no mundo por obra e vontade das elites brancas e detentoras do poder econômico. Lendo Diamba, tomamos conhecimento, inclusive, que foram médicos brasileiros os responsáveis por tocarem o terror mundo afora transformando a maconha em algo mais nocivo e perigoso, segundo eles, até mesmo que o ópio.
Habilidoso e com excelente domínio da narrativa seriada em quadros ilustrados, Daniel Paiva conta como o processo de perseguição contra a marijuana foi sendo urdido e se fortaleceu ainda mais a partir de meados do século XX quando até artistas como Gilberto Gil e Rita Lee foram presos acusados de serem “maconheiros”.
Mas, de maneira inteligente, ao mesmo tempo em que descreve a sucessão de absurdos que fazem com que ainda hoje tenhamos uma política de combate às drogas ineficaz, Paiva vai desconstruindo o discurso repressor, colocando em paralelo a visão dos povos indígenas, dos negros trazidos da África para serem escravizados e dos usuários atuais cuja relação com a ganja é completamente diversa e onde fica evidente o descalabro perpetrado pelo poder político, econômico, militar e os algozes por eles financiados.
É bom aqui frisar que a longa história do uso da planta pelo homem – da fabricação de tecidos a produção de medicamentos – e os seus desdobramentos é complexa, mas que pelas mãos e a arte de Daniel Paiva, flui de forma equilibrada de modo que tanto os aspectos jurídicos envolvendo a questão, quanto o seu uso como símbolo de resistência cultural ganham relevância e são devidamente contemplados pelo quadrinista.
No livro vamos conhecer histórias trágicas de vítimas da polícia, da perseguição comandada pelos militares nos anos da ditadura, mas também, sem ranço e com senso de humor, muitas curiosidades são lembradas por Paiva, como a conexão entre Exu Elegba, o orixá mensageiro e a planta ao qual está associado: o ewe igbó, a liamba ou diamba dos cultos afros, o famoso “verão da lata” de 1987 (para detalhes leiam o livro rsrsrs) e o surgimento das marchas da maconha, cuja primeira edição aconteceu em 2002, no Rio de Janeiro.
Como qualquer substância, a cannabis e seus elementos constitutivos, como tudo que existe no planeta pode fazer bem ou fazer mal, depende do uso que dela se faça. O vinho é uma excelente bebida, mas se o usuário entornar muitas garrafas, pode fazer muita besteira. O uso medicinal da maconha foi registrado pelos chineses dois mil anos antes de Cristo e hoje tem um monte de gente recuperando a saúde graças a medicamentos extraídos da planta. Povos indígenas usam-na em suas cerimônias para estabelecer contato com seus mundos sagrados e grande parte da população mundial fuma baseado para se livrar do estresse e amenizar as neuroses provocadas pela vida moderna.
A leitura de Diamba é, portanto, um ótimo reforço para quem deseja abraçar a lucidez, o bom senso e botar para correr a caretice. Defender a maconha não é fazer proselitismo do uso de drogas. É questionar, como fez o sambista Bezerra de Silva, nos versos resgatados por Daniel Paiva para finalizar sua HQ: “… me explique doutor, por que é que essa erva é proibida?”
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