NÉVOA CINTILANTE
A perda repentina da visão de Borges, Cabral e Joyce é mote para Julian Fuks vasculhar os limites do processo criativo
Por Rafael Dias
Julián Fuks parece gostar de vasculhar nossos próprios limites. No seu novo livro Histórias de Literatura e Cegueira {Borges, João Cabral e Joyce}, o jornalista e escritor paulistano se debruça, com fervor de monge, sobre o processo da escrita, mais precisamente sobre o estado frágil do interlocutor diante da perda repentina da visão e tudo o que decorre disso, o medo da morte, a angústia e a solidão, para a sina de quem escreve. Porém ao criar uma ponte entre os mundos de três mestres da literatura mundial do Século 20 – o brasileiro João Cabral de Melo Neto, o argentino Jorge Luis Borges e o irlandês James Joyce – Fuks evoca mais o oitavo sentido (a transcendência) e fala menos de uma condição física que de uma lucidez criativa. A partir do encadeamento das três histórias, o autor quer provar não uma tese nova, mas uma forma de superação das mais belas: a de que das trevas é possível extrair a porção luminosa, ainda que abstrata.
O entrelaçamento entre as histórias se justifica. Os três escritores apresentaram, já no auge do ofício de seus atos de doação, sintomas de cegueira tardia. As semelhanças são o ponto de partida, mas logo desembocam nas diferentes reações à crueza do trágico que cada um deles se empenha para continuar a existir. São traços de personalidade que Julián Fuks delineia com rigor descritivo: resignado, Borges opta pelo escape do sonho; João Cabral emudece e se recolhe na quase-morte do sono; e, o avesso dos outros dois, Joyce e sua incansável luta para vencer os surtos de visão turva para conseguir escrever Finnegans Wake, sua última obra-prima. Cada um, em seu grau de intensidade, e com a ajuda de amigos e parentes, encontrou sua maneira de se sentir menos órfão.
O estilo de Fuks, uma prosa poética suave, clássica e bem elaborada, caminha de mãos dadas com o fluxo de cada vivência. Há momentos em que sua escrita parece flutuar, como pedras no ar, nuvens tristes e resolutas, com uma alegria contida, como se testemunhasse de dentro as ações, sem impor comiseração alguma. Numa narrativa híbrida entre ficção e biografia, o autor consegue tecer histórias verossímeis e, sobretudo, humanas pela recriação próxima das angústias existenciais, muito mais que um simples exercício de metalinguagem.
Para um tema tão sombrio, Fuks tem o mérito de vislumbrar beleza e conforto. A falta de visão seria só um pretexto para enxergar melhor, ver além. E, em meio à névoa cerrada e tolhida, lança luz sobre uma faísca cintilante.
HISTÓRIAS DE LITERATURA E CEGUEIRA {BORGES, JOÃO CABRAL E JOYCE}
Julián Fuks
[Record, 160 págs, R$ 30]