Há momentos em que, numa espécie de relação dialética, o teatro nos convoca a perceber sobre o que nos compõe como gente e o que somos capazes de criar nesta aventura chamada vida. Entre muitas coisas, somos feitos de tempo. Uns mais, outros menos. E também de canções, pensamentos, risos, fazeres solitários e coletivos, dificuldades e dores também. Mas é preciso que haja momentos bem vividos regados a gargalhadas e paixões para que esta viagem chamada vida faça algum sentido. E de tudo isso se faz a experiência – que costuma vir com o tempo – e também a coragem – que alimenta essa tal experiência.
Dentre as diversas formas de arte, o teatro é um desses lugares onde o “tempo é um elemento fundamental”, trazendo palavras do ator e diretor Eduardo Moreira, do Grupo Galpão (MG), que integrou o elenco dos espetáculos De tempo somos – um sarau do Grupo Galpão (2014), com direção de Lydia Del Picchia e Simone Ordones, na sexta-feira (17), e Cabaré Coragem (2023), mais recente montagem do Grupo Galpão, dirigida por Júlio Maciel, no sábado (18) e domingo (19), no palco do Teatro Luiz Mendonça, como parte da programação do 22º Festival Recife do Teatro Nacional.
São 40 anos dedicados à criação e ao teatro que percorre a trajetória de uma das companhias mais importantes e reconhecidas no Brasil. Em meio à celebração dessa história, o público do Recife teve a oportunidade de assistir as duas peças em três sessões distribuídas ao longo do fim de semana. Enquanto De tempo somos apresenta um sarau com textos e 25 canções, que fazem parte da trajetória do grupo mineiro, como Canção dos atores, de Um Molière Imaginário (1997) e Maninha, de Romeu e Julieta (1992), que ganham camadas de significados, sem reiterar um lugar de nostalgia, mas de olhar para o presente, o segundo espetáculo trazido, Cabaré Coragem, mergulha no universo dos cabarés, trazendo um cenário e figurinos assinados por Márcio Medina cheio de detalhes capazes de nos levar a uma viagem no tempo e na fantasia daqueles filmes burlescos.
Nessa montagem, aliás, além das canções, se evidenciam práticas e textos do poeta, dramaturgo, professor e incansável ativista Bertold Brecht, que ganham um viés contemporâneo ao serem friccionados ao campo de criação que circunscreve espetáculos do Galpão, nessas quatro décadas de história.
Foram cinco anos sem o grupo estrear um novo espetáculo, daí, veio a pandemia e após esse período nebuloso – tanto com relação à covid-19, quanto à situação política do país – o processo de pesquisa e criação da nova montagem se delineou. Antes de chegar à capital pernambucana, onde finalizaram a turnê pela região Nordeste, o Grupo Galpão também passou por outras cidades, como Aracaju, Salvador, Natal e Fortaleza. “A gente estava querendo algo festivo, muito alegre, com muita música, com muito humor, mas também com muita crítica social, sobre o Brasil, sobre o mundo, sobre o momento difícil que se vive, esse perigo de retorno do fascismo e a desigualdade social muito presente no país”, conta o ator Júlio Maciel, em entrevista à O Grito!
Numa atmosfera colorida e delirante, com muita música e purpurina, Cabaré Coragem faz do palco – ou melhor, de todo o espaço teatral, já que os atores e atrizes circulam também em meio à plateia – um grande espaço musical, liderado pela personagem da grande atriz Teuda Bara – que interpreta a dona do estabelecimento. Repleto de ironias, humor e coreografias, as cenas trazem diálogos entre o público e o elenco, que acessa por outras vias reflexão sobre questões sociais e políticas que faziam parte no século passado, quando Brecht escreveu ao longo de três décadas, por exemplo, as Histórias do Sr. Keune, mas que parecem ainda fazer sentido nos dias de hoje. Afinal, a desigualdade econômica, a exploração dos trabalhadores e o “rico cada vez fica mais rico” – trazendo um verso da música Xibom Bombom, da banda baiana As Meninas, que aparece no repertório da peça – permanece como parte integrante deste mundo, lá na Europa, ou do lado de cá, no Sul Global.
Tanto em De tempo somos quanto no Cabaré Coragem, a canção se evidencia dramaturgia nos espetáculos do Grupo Galpão. Elas são formas de conexão quase que imediata entre elenco e público, mas também entre os próprios atores. E para nós, na plateia, é sempre envolvente assisti-los cantando e tocando instrumentos musicais que se espalham pelo palco, apresentando versões outras de músicas como Eu sou a diva que você quer copiar (2014), de Valeska Popozuda, ou Perigosa (1977), composição de Rita Lee, Nelson Motta e Roberto de Carvalho.
E sobre o significado do teatro em sua vida, em entrevista à O Grito!, antes de entrar em cena, Teuda Bara, uma das fundadoras do Galpão, respondeu sem exitar: “É tudo! Quando adoeci que a médica falou comigo. ‘Ah, mas a gente tem que te operar. Tenho medo de você ficar triste.’ Eu falei: ‘Mais triste do que não fazer teatro?’ Na pandemia, achei que eu ia enlouquecer, fiquei dentro de um quarto. Não podia passar de um lugar com fita crepe. E o que ia fazer? Com quem vou conversar? Com quem vou rir? Com quem vou falar? O teatro, para mim, é tudo, é o meu meio de comunicação, meu jeito de falar com o público.” Por toda essa dedicação, entrega e vontade de encontrar o público dá para imaginar como foi assistir essa artista e seus companheiros de cena no palco do Teatro Luiz Mendonça.