A mostra de filmes hispano-americanos em competição no 44º Festival de Gramado é provavelmente a mais diversificada do evento em estilos, mas traz em comum o resgate da história e das raízes culturais de países como Bolívia, Chile, Argentina, sob uma perspectiva de inclusão. As relações de gênero também estiveram bastante presentes nos temas abordados pelos cineastas.
De Gramado (RS)
A competição hispano-americana de Gramado, que se iniciou na segunda, 29, terminou na sexta (2), com a exibição do chileno Sin Norte (2016). Classificada pelo evento como Mostra Latino-Americana, e pelo site como Longas Estrangeiros, a seleção incluiu ainda as películas Carga Sellada (Bolívia/México/Venezuela/França), Campaña Antiargentina (Argentina), Esteros (Argentina/Brasil), Guaraní (Paraguai/Argentina), LasToninas Van al Este (Uruguai/Argentina) e Espejuelos Oscuros (Cuba), que inaugurou a mostra.
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Protestos, polêmicas e interculturalismo
O boliviano Carga Sellada e o paraguaio Guarani lançam um olhar sobre as raízes indígenas e o impacto de suas tradições culturais diante da perspectiva de uma globalização que ignora o incessante e contínuo processo de exclusão social, a partir de perspectivas bastante distintas de narrativa e de produção. Carga Sellada é o longa de estreia da diretora Julia Vargas Weise – foram quatro mulheres diretoras na mostra latina -, pesquisadora, diretora de fotografia e realizadora de curtas e médias já veterana. O enredo foi livremente baseado em uma história real sobre um trem que estaria carregando uma carga tóxica, cujo conteúdo nunca é revelado na película, e que foi tratada de forma sensacionalista pela imprensa. A bordo de um velho trem, três policiais e uma jovem clandestina, Tania (Daniela Lema), transportam uma carga que acaba se tornando amaldiçoada, e por conta disso são alvo de ataques do exército, dos órgãos de saúde pública governamentais e das comunidades indígenas.
A película foi rodada em 2012 nos altiplanos bolivianos, uma região árida e inóspita daquele país, durante o inverno. Foram feitos ensaios exaustivos antes de partir para a rodagem, pois a equipe enfrentou diversos problemas, desde as negociações com as comunidades indígenas que participam da filmagem, até questões práticas como o uso da ferrovia, que também é utilizada por trens que estão em linha. O trabalho de atores, magnífico, se faz sentir nas telas. “Cada personagem tinha uma mandala. Eu fiz uma indígena. Não sou indígena. Sou boliviana. Todas as manhãs eu ia aos mercados, observar as mulheres indígenas que trabalham lá. Elas têm uma energia nas costas, carregam peso, trabalham na terra”, contou Daniela, que teve de aprender a jogar futebol com as mulheres para dar mais verossimilhança ao seu papel.
A locação principal foi a cidade de Machacamarca, onde o longa estreou em fevereiro deste ano. A convivência com os mineiros foi fundamental para o processo do filme, revelou o ator Fernando Arze, que interpreta Antonio Urdimala, o líder dos policiais, em bom português com sotaque carioca. Nascido na Bolívia, Arze foi viver no Rio de Janeiro aos 10 anos, fez TV, teatro e cinema. Participou de Primeiro Dia de Um Ano Qualquer (2012), de Domingos de Oliveira. Há três anos, seguiu de férias para a Bolívia e acabou ficando. Os mineiros indígenas bolivianos possuem uma religião popular, derivada da cultura inca, e uma visão sincrética de Deus e do Diabo, que vive nas minas, e não é um ser maligno, como ocorre no cristianismo. Julia quis mostrar essa visão sem preconceito, o que nem sempre resulta claro para um espectador estrangeiro, mas resulta visualmente impactante. “As filmagens acompanhavam o tempo deles, eles ensaiavam com agente, comíamos juntos, e isso criou o clima familiar da película”, revelo Arze. Ele definiu o processo de produção como “uma aventura” sob uma temperatura de 17 graus negativos. A ação transcorre dentro de um universo predominantemente masculino, corporativo, mas na medida em que o filme avança, quem vai interferindo naquele universo fechado, trazendo a realidade do povo, é a personagem feminina, Tania, e as mulheres, que desempenham um papel muito importante nas comunidades, fazendo barricadas, organizando assembleias.
Já o longa Guarani, do diretor Luís Zorraquín, adota um estilo documental, praticamente sem diálogos, para descrever a relação entre Atílio (Emílio Barreto) um avô paraguaio, pescador, que não fala o espanhol, pois se recusa a abandonar suas tradições guaranis, e sua neta, que foi deixada aos cuidados da família pela mãe, que seguiu para Buenos Aires tentar a sorte. O ator que faz o avô é Emilio Barreto, profissional de teatro, que foi descoberto pelo diretor num vídeo, e escolhido porque lhe pareceu que ele não era um ator, tamanha a sua naturalidade. A garota Jazmin Bogarin, que vive Iara, não era profissional, mas tinha o que Zorraquín definiu como talento natural, e ele adaptou a personagem à personalidade dela. As cenas da garota escutando música pop na bicicleta, como qualquer adolescente no mundo inteiro, ajudam a revelar que ela não somente representa a pós-modernidade por ser adolescente, mas a constitui como o elo do avô com a nova realidade que ele rejeita. Os atores do filme, apesar do tom documental, são todos profissionais, embora desconhecidos, mas em cena possuem uma naturalidade surpreendente. O Rio Paraná, que sai do Paraguai e segue para a Argentina, onde também se fala o guarani, sobretudo em Correntes, é o fio condutor da narrativa, quase até o final, pois os personagens são obrigados a pegar um ônibus para chegar à capital portenha.
Emilio foi militante político, sob a ditadura Stroessner, viveu na Argentina, para onde muitos paraguaios migram até hoje, e confessa que o roteiro o fisgou exatamente por este motivo, pela defesa intransigente da cultura guarani. Para viver o pescador Atílio, ele fez uma preparação intensa sobre a cultura da população que vive às margens do rio, analisando a forma como eles caminhavam, o comportamento. Difícil acreditar, tal o realismo de sua interpretação. A migração, as mudanças econômicas e o desenvolvimento se insinuando nas relações familiares, são parte da trama, em que o avô, que cria a neta como um varão, trabalhando com ele na pesca, decide que chegou o momento de ir até Buenos Aires para resgatar a relação entre mãe e filha. Missão cumprida, ele retorna para o seu rio Paraná, que não é mais o mesmo, e onde ele eventualmente transporta cargas de contrabando (uísque) para poder sobreviver aos novos tempos.
O Guarani se coloca como um contraponto a outro filme paraguaio, sucesso absoluto de público, Sete Caixas (7 cajas), de Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori, que também mostra a cultura guarani, porém no contexto urbano de Assunción, a capital. No entanto, a estrutura narrativa de 7 Caixas pende claramente para a linha do entretenimento, do cinema de gênero, e o guarani é intermediado por falas em espanhol. Apesar do guarani ser o idioma mais falado, é mais difícil a inserção comercial para este tipo de película, estreia do diretor, que vem da publicidade, e que levou sete anos para concluir o projeto.
Relações de Gênero
A questão da identidade sexual é recorrente no festival, sobretudo nos curtas, e está presente na mostra latina com Las Toninas Van al Este de Gonzalo Delgado e Verónica Perrotta, fala da relação entre um pai homossexual assumido, Miguel Ángel García Mazziotti (Jorge Denevi) e sua filha Virgínia, interpretada pela diretora Verónica. Mazziotti é decadente e vive em Punta del Este, onde é conhecido como “El Gordo”. Pai e filha não se falam há anos quando ela, que é professora numa escola infantil, decide visitar o pai sem avisar de sua chegada para lhe dizer que está grávida. E por conta disso, buscar reconciliar-se com ele, apesar de todas as diferenças, para enfim formarem uma família.
A história da mãe de Virgínia não é abordada, mas percebe-se nos primeiros diálogos que ambos não possuem a menor intimidade. A filha surpreende o pai com um michê, de quem anota o número de telefone. Aos poucos vai se revelando que o verdadeiro motivo da visita nada tem a ver com um futuro bebê, mas com a carência afetiva da filha, que se sentiu preterida pelo pai, e busca ser importante para ele, seja reproduzindo seu comportamento, que ela aparentemente critica, seja livrando-se por ciúmes, do gato do pai. Cesar Troncoso, ator bastante conhecido dos brasileiros, faz uma participação especial como um (velho) garoto de programa. E para completar, surge o marido de Virgínia.
A homossexualidade do pai é retratada com naturalidade no filme, sem psicologismos, e é aceita pela filha e pelo genro sem questionamento, e vem daí a postura totalmente libertária do filme. Os questionamentos entre pai e filha são os mesmos que qualquer relação familiar como essa comporta, exceto pela natureza boêmia do pai, mas que encanta a filha. Ao longo da narrativa, na verdade, percebemos que os dois têm muito em comum, inclusive no temperamento provocador e rebelde, o que fica patente quando ele vai com Virgínia a uma festa badalada, sem ter convite, e tenta usar de subterfúgios para entrar. Virgínia entra no jogo do pai e acaba contribuindo com uma hilária performance, na tentativa de dissuadir a hostess do evento. As piadas e situações cômicas nunca resvalam para a comédia sitcom, são bastante delicadas e sensíveis, no limite do que se convencionou chamar de dramédia.
Outro longa que aborda a homossexualidade sob uma ótica pouco usual no cinema é Esteros, de Papu Curotto, que narra a história de amor entre dois garotos que se conheceram meninos, e cujas famílias são amigas. Matias (Ignácio Roers) e Jeronimo (Estebán Maturini) cresceram juntos em Paso de Los Libres (Argentina), região folclórica, ecológica e que possui um carnaval muito parecido com o do Brasil. Ambos sentem uma forte atração pelo outro, mas Matias já assume sua identidade sexual precocemente, enquanto o outro oscila entre as garotas e o amigo. O pai de Jeronimo acaba seguindo para o Brasil, e os dois se separam por muitos anos. Quando se reencontram, Jeronimo está namorando uma brasileira, Rochi (Renata Calmon) – o filme é uma coprodução Argentina e Brasil, e há alguns diálogos em português. O encontro casual acaba fazendo renascer as memórias da adolescência e a paixão. O conflito aqui é sempre interno. Existe a suposição de que os pais de Jeronimo jamais aceitariam a relação, enquanto os pais de Matias, e em especial, sua mãe, embora nunca confrontados com a opção sexual de ambos, parecem mais inclinados a lidar com essa possibilidade.
O filme resolve o conflito entre os dois jovens, mas deixa em aberto a questão do preconceito que provavelmente terão de enfrentar para viver o seu amor. O famoso beijo chegou a ser aplaudido durante a projeção. A paisagem da pequena cidade do interior e seus estuários, que dão titulo à película, dão o tom bucólico perfeito para o romance.
Reinventando a nação
O chileno Sin Norte e o argentino Campaña Antiargentina tratam ambos de questões nacionais sob um olhar bem contemporâneo e urbano, um redescobrindo a história da nação, o outro um road movie que adentra o interior do país.
Em Campaña Antiargentina, de Ale Parysow, montador que faz sua estreia no cinema ficcional, e que ainda não estreou em seu país natal, temos uma biografia não autorizada, que adota o estilo mockmentary, de um ídolo pop, Leo J., que começa a se tornar obsessivo e mergulha em teorias conspiratórias para defender a pátria. A denúncia de uma suposta campanha contra a Argentina foi um dos estratagemas desenvolvidos pela ditadura militar para justificar a repressão e a perseguição a pessoas durante o processo que ficou conhecido como “Processo de Reorganização Nacional da Argentina”, levada a termo ao longo da Copa Mundial de Futebol de 1978 – dai a alusão explícita ao futebol e à Maradona dentro da película, que, entretanto, não participou do evento naquele ano.
Ao resgatar esse passado histórico, que surge em forma de imagens de arquivo, o protagonista Leo vai cada vez mais se enfronhando em uma busca pelos verdadeiros inimigos da Argentina. Tudo começa quando Leo (Juan Gil Navarro) recebe de herança uma mansão antiga. Na casa, ele encontra documentos velhos que se referem à “campanha antiargentina”, que naquele período foi liderada por um grupo maçônico conhecido como Logia Cisneros. Convencido de que acaba de descobrir uma importante conspiração contra o seu país, , que teria feito como vítima inclusive a Carlos Gardel, o famoso cantor, Eva Perón – a próxima vitima pode ser Ricardo Darín, ator que se converteu em símbolo da Argentina, ou o Papa Francisco. Leo decide se dedicar a descobrir toda a verdade e a eliminar os inimigos da pátria amada. Contrata um câmera para filmar sua busca em tempo real, e acaba por envolver a todos em sua paranoica empreitada.
Esta comédia negra intercala materiais de arquivo com cenas de ficção, e faz paródia sobre o nacionalismo tacanho abordando diversos conflitos e contradições locais. O cartunista, ator, cantor e autor Pablo Marcheti compôs e interpreta a música que dá titulo ao filme, irreverente e autoparódico. Os trechos de documentários exibidos na película são materiais pouco conhecidos do público argentino, segundo Parisow, justamente pra confundir os espectadores sobre a autenticidade das imagens. Para dar mais veracidade a Leo, o falso documentário insere entrevistas com personalidades famosas argentinas, como o produtor, roteiristas e ator Adrián Suar, interpretando a ele mesmo, ou ainda o jornalista . O problema é que a overdose de imagens, recortes e recursos de pós-produção esgotam a estrutura fílmica, e acabam esvaziando o tema principal, desconstruindo a linguagem narrativa do filme que se confunde por vezes com um videoclipe.
Já Sin Norte, de Fernando Lavanderos, é mais feliz ao redescobrir o Chile sem nacionalismos, mesmo porque também não é este o problema principal do filme, mas quase que um tema incidental. O titulo, numa tradução livre, tanto poderia significar sem rumo como “Sem Norte”, referindo-se à região norte chilena, que está sucumbindo ao desenvolvimento desenfreado das empresas termo elétricas, sendo destruído pouco a pouco. Esteban (Koke Santa Ana) sai de Santiago, abandona o emprego e viaja até o Norte de carro, procurando descobrir o paradeiro de Isabel (Geraldine Neary), sua namorada. Esse trajeto vai conduzir Esteban por diversos povoados de um Chile que está deserto, poluído. Em sua busca angustiada, ele vai a lugares por onde ela passou, encontra gente que ela conheceu. Na medida em que a viagem avança, fazendo com que ele rompa com a vida que ele vivia em Santiago, seu objetivo inicial vai ser perdendo em meio ao caminho e à realidade que ele está vivenciando, como se fosse um rito de iniciação. Quando ele a reencontra, percebe que o que ele veio buscar não está mais nela.
O personagem que nunca havia ido àquela região do país se deparou om o desconhecido, com desigualdades sociais que ele ignorava, pois as cidades são muito pobres, e chega a pensar que vai morrer quando é perseguido por um bando de delinquentes. Percebe-se que o filme, tal como o personagem, não possuía um roteiro prévio, fechado. Sem falar explicitamente em política, o filme denuncia uma situação de exclusão e ataque incessante ao meio ambiente, seja através da personagem que cuida dos cactos, para que não se extinguiam, seja através da moradora de rua que dá abrigo aos cães, a sua paixão. Segundo Lavanderos, as minas contaminaram essa paisagem. São muitas cidades que foram destruídas pela exploração, lugares que eram colônias de pescadores. Havia muita gente protestando ao longo das filmagens, mas como essa não era a intenção do filme, não foram incluídas nas cenas. Quando começaram a pensar no projeto, há cinco anos, havia um rio maravilhoso naquela região. Quando voltaram o rio estava totalmente poluído. O problema é que há muitas cenas inseridas dentro da ação dramática, completamente documentais, “sujas”, que acabam soando de forma muito descolada da trajetória do personagem, prejudicando a compreensão desse imaginário. A destruição ambiental se presta bem ao processo de desconstrução do protagonista.