Golpe de Sorte em Paris
Woody Allen
FRA, 2024, 1h33. Comédia. Distribuição: O2 Filmes
Com Lou de Laâge, Melvil Poupaud
Perto de completar 90 anos de idade, Woody Allen segue ativo. Para além dos escândalos pessoais em torno da sua trajetória, impossíveis de serem menosprezados quando seu nome vem à pauta, a longevidade da atuação profissional do cineasta é algo notável. Observo com curiosidade, portanto, como o diretor concebe, nesta fase da vida, um filme que versa sobre a força da casualidade – do azar e da sorte – nos domínios dos acontecimentos humanos.
Primeiro filme de Allen totalmente falado em outra língua que não o inglês, Golpe de Sorte em Paris (2023) é o retorno do artista à capital francesa, depois do merecidamente aclamado Meia Noite em Paris (2011). As obras, entretanto, não poderiam ser mais distintas. Na atual produção, o cineasta constrói um suspense bem hitchcockiano, no qual o charme geográfico funciona apenas como cenário de luxo para a crônica sentimental dos personagens.
O enredo é trivial: Fanny (Lou de Laâge) vive uma vida de opulência com o marido Jean (Melvil Poupaud), homem de negócios que se tornou milionário fazendo, em suas palavras, “os ricos ficarem mais ricos”. O suposto casamento dos sonhos é estremecido quando Fanny esbarra com Alain (Niels Schneider), antigo colega de escola, por quem logo se apaixona.
Ao decorrer da projeção, é inevitável não associar Golpe de Sorte em Paris a Ponto Final – Match Point (2005), outra grande obra de Woody Allen. Estão ali novamente o chamuscamento da tentação, a infidelidade e, principalmente, o modo como o acaso é peça essencial ao longo da narrativa. Sem a crescente sensualidade do anterior, esta nova produção opta por uma condução mais direta, menos romantizada, daquela relação proibida e seus consequentes rumos. Aqui, o diretor parece mais interessado ao cataclismo individual da protagonista, dividida entre a segurança do matrimônio e a paixão com um jovem escritor.
O filme é beneficiado pelo sofisticado trabalho de Vittorio Storaro, tradicionalíssimo diretor de fotografia, parceiro recorrente de Allen e responsável por deslumbres estéticos como Apocalypse Now (1979), O Conformista (1970) e O Céu Que Nos Protege (1990). Em Golpe de Sorte em Paris, Storaro dá predominância a tons de amarelo quase dourado, coloração que enfatiza tanto a noção de riqueza material no entorno dos personagens, quanto à ideia do alvorecer do amor entre Fanny e Alain. A direção de arte também é competente e demonstra requinte nos detalhes: por exemplo, há um espelho com três partes, circulares e complementares, no quarto conjugal de Fanny e Jean, que claramente simboliza o triângulo amoroso em curso.
Apesar de seus pontos positivos, a nova obra de Woody Allen paira num terreno pouco criativo, revisitando estratagemas narrativos que o próprio diretor já elaborou anteriormente. Enquanto o filme enfoca no romance proibido e nas angústias interiores da protagonista, até convence e prende a atenção. A partir de determinado ponto (e aqui evitarei me aprofundar em detalhes), a história é desfavorecida por uma trama atrapalhada, cuja ânsia em criar situações de tensão atropela a fluidez de um roteiro que caminhava bem.
Há cenas mesmo implausíveis, como a qualidade da gravação de uma conversa feita por um detetive, ou a ridícula solução narrativa para determinada personagem conseguir entrar num apartamento do qual não tinha acesso. Ao imprimir súbita relevância para a mãe da protagonista (Valérie Lemercier), Golpe de Sorte em Paris prejudica um terceiro ato que, convenhamos, toma rumos bem insatisfatórios; infelizmente, mantém-se no padrão woodyalleniano pouco inspirado das últimas produções do cineasta.
De qualquer modo, para os apreciadores da genialidade artística de Allen, a nova obra do diretor é atraente o suficiente; elenco eficaz e entrosado, ótima trilha sonora (com a elegância do jazz, marca registrada do cineasta) e cenas bem construídas. Entre os filmes “menores” da filmografia de Woody Allen, Golpe de Sorte em Paris é um interessante exemplar.
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