Graphic novel The King presta digna homenagem ao mito de Elvis Presley
Por Dandara Palankof
Colunista da Revista O Grito!
Uma das minhas primeiras memórias musicais é de minha mãe ouvindo Elvis Presley. Grande parte das tardes de sábado da minha infância e do início da minha adolescência tiveram como trilha sonora seus clássicos que, aos poucos, fui aprendendo a admirar. Hoje, os vinis que eram dela estão na minha estante e volta e meia estou importunando os coleguinhas com minha interpretação de “Suspicious Mind”.
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Elvis também foi uma das primeiras figuras através das quais apreendi o conceito da imortalidade na cultura pop. Afinal de contas, quando descobri quem ele era, Elvis já havia falecido há quase 15 anos, e sua obra permanecia relevante – e permanece até hoje. Talvez Elvis não possa mais ser considerado uma unanimidade, mas todos sabem quem ele é e conhecem, ao menos, uma de suas canções. Seus fãs antigos continuam apaixonados e novos fãs continuam a surgir; uma força que apenas as lendas possuem.
Além disso, sua imagem é tão forte no imaginário da música popular que, até pouco tempo atrás, ainda eram comuns “notícias” de avistamentos de sua figura nos recônditos mais improváveis dos Estados Unidos – e também de outros países –, fazendo a alegria dos editores dos tabloides especializados em histórias insólitas. Tudo isso cunhou uma das frases feitas mais clichês da cultura popular: “Elvis não morreu”.
Foi partindo desse princípio que o quadrinista Rich Koslowski escreveu e desenhou a graphic novel The King. O gibi foi publicado em 2005 pela editora norte-americana Top Shelf – mas só o descobri no ano passado, quando a editora promoveu seu saldão anual (que eu também só descobri no ano passado).
O gibi foi para o carrinho por dois motivos; primeiro, Koslowski é autor de Três Dedos, sua primeira graphic novel, indicada ao Prêmio Eisner e publicada no Brasil pela Gal Editora, uma sensacional paródia de Hollywood, do universo Disney e dos desenhos animados em geral, narrada de modo a emular os documentários para a televisão norte-americana que contam bastidores – de preferência, sórdidos – do mundo da música e do cinema; uma pequena obra-prima, corra atrás. O segundo, é claro, foi a sinopse.
O protagonista de The King é o jornalista Paul Erfurt; durante vários anos, ele assinou inúmeras reportagens sobre as várias aparições de Elvis Presley, nas mais diversas formas. Cansado, Erfurt abandona o tabloide para o qual trabalhava em busca de se tornar um jornalista sério; mas o mito que permeou sua carreira jornalística uma vez mais cruza seu caminho: ele acaba designado para escrever um artigo sobre um misterioso artista que personifica Elvis, se apresentando há meses em um hotel de Las Vegas para uma crescente multidão, cuja fama ultrapassou a cidade e se alastrou pelo mundo.
Perfeitamente caracterizado – à exceção de uma espécie de capacete estilizado que usa o tempo todo e cobre grande parte de seu rosto –, as apresentações daquele que chama a si mesmo simplesmente de Rei são tão perfeitas e tão semelhantes às do próprio Elvis, em todos os aspectos, que muitos de seus fãs, e do secto que ele reuniu em torno de si, passam a acreditar que ele, de alguma forma, é mesmo Elvis Presley. O que o Rei confirma – em partes. Erfurt, é claro, não acredita nisso e está disposto a descobrir qual a história desse personagem tão intrigante, que realmente tem voz, aparência e atitude de Elvis Presley, e convenceu pessoas de que era o próprio, de forma tão profunda ao ponto de arrebatar fiéis seguidores.
A história é contada através desse contraponto básico: a descrença de Erfurt x a misteriosa aura de autenticidade que o Rei emana, no palco e fora dele. Em momento nenhum o jornalista duvida que está diante de uma farsa e seu desejo de desvendar a verdade por trás do personagem está ligado não apenas a sua necessidade de provar-se enquanto profissional “sério”, mas também ao seu faro jornalístico. Essa dualidade se constitui no gatilho para que a trama trate de uma das questões mais primordiais: o que é a verdade. Erfurt investiga a história no intuito de provar a fraude, a sua verdade; o Rei está seguro de que tudo o que diz é verdade; as entrevistas com os integrantes do círculo interno do Rei lhe mostram que eles decidiram segui-lo por ele ter lhes mostrado, também, a verdade a cada um deles – e é isso que ele promete também a Erfurt: mostrar-lhe a história que o jornalista realmente quer contar.
The King não é necessariamente uma HQ original em sua estrutura; a trama, em si, é um clichê (em Três Dedos, eles também existem, mas são subvertidos pela composição estrutural da paródia). O maior deles talvez seja a construção do protagonista, o fracassado na vida pessoal e frustrado na vida profissional diante da chance, talvez única, de reerguer a carreira e retomar sua vida – como poderia se esperar, os dois personagens mais interessantes são coadjuvantes, parte do tal círculo interno. A construção do suspense – qual seria a verdadeira identidade do Rei e quem é a misteriosa figura que espreita e ameaça Erfurt – também é semelhante a uma série de outras histórias que já vimos nos mais diversos meios, inclusive em sua conclusão. Mas se o que importa é o caminho, Koslowski se sai muito bem.
É conflito o entre as verdades vivido por Erfurt que dá o tom da história e configura as questões que tornam The King uma obra interessante: o que faz um mito e como ele altera a realidade ao seu redor – as vidas daqueles que são devotados ao seu ídolo e, em última instância, lhe conferem essa imortalidade, seja ela concreta ou não. O que importa, no fim das contas, é o poder transformador da crença. Uma afirmação metafísica que abarca da construção de Sandman até uma leitura mais leve (não leviana) de crenças religiosas em geral, passando pela cultura popular de massa, a forma de idolatria mais presente na contemporaneidade.
Sem grandes ousadias em sua composição de página, a narrativa visual de Koslowski se destaca pelo ritmo correto, cuja lentidão nos momentos em que Erfurt está desnorteado dão ao leitor uma maior dimensão de sua frustração e acelerando de forma empolgante quando há uma maior tensão; além disso, o autor também sabe quando economizar nos diálogos para deixar que as imagens falem por si – facilitado pelo bom trabalho de expressão dos personagens, em seu traço leve, mas bastante detalhado.
Mesmo que não seja uma obra surpreendente, The King merece ser lida. O desenrolar da trama e as considerações que traz à reboque fazem dessa HQ não só uma ótima história em quadrinhos, mas também uma bela e sincera homenagem a um dos maiores nomes da música do século 20.
THE KING
Rich Koslowski (texto e arte)
[Top Shelf, 208 págs, US$ 19,90 (Importado) / 2005]