FOI CARMEN
de Antunes Filho
Por Alexandre Figueirôa,especial para O Grito!
O teatrólogo Antunes Filho incorpora no espetáculo Foi Carmen uma dupla homenagem. Se o tema da peça é a cantora brasileira Carmen Miranda, quem inspira o modelo da encenação é o teatro butô do dançarino japonês Kazuo Ohno. Antunes, inclusive, concebeu o espetáculo para saudar o centésimo aniversário do artista nipônico. Um dos grandes nomes dos nossos palcos, Antunes Filho, aos 80 anos, 60 dos quais dedicados ao teatro, nos revela uma jovialidade invejável. Inquieto e desafiador, ele não se cansa de experimentar e mais uma vez realiza um trabalho impecável em que desburocratiza os sistemas de atuação convencionais.
Foi Carmen é para ser vista como a leitura de um poema. Num primeiro momento ficamos pensando como é posível juntar Carmen Miranda e teatro butô? A resposta nos é dada em cerca de 50 minutos com uma simplicidade e um refinamento raramente vistos na cena contemporânea. A dança-teatro de Kazuo Ohno busca como matéria prima de sua dança o incosnciente comum a todos os homens e os fenômenos básicos da natureza. A sua gestualidade é uma tentativa constante de dissolução dos códigos corporais massificados. Os quatro personagens colocados na cena por Antunes não revivem Carmen Miranda numa perspectiva de reconstrução biográfica de um dos mais cultuados ícones da cultura nacional, mas mergulhando no mito Carmen, reconstruido teatralmente, e fazendo reviver o que o imaginário popular elaborou a seu respeito.
Para tornar visível esta celebração, Antunes pega como fio condutor de sua investigação poética o sonho de uma menina que ao colocar um turbante manifesta sua fantasia de se tornar artista. Em seguida um malandro descreve numa língua ficcional cenas da vida da cantora até que um vulto entra em cena e faça reaparecer reminiscências e objetos que compuseram a imagem consagrada de Carmen Miranda. Cada movimento, cada adereço de cena, cada gesto é um repositório de signos que vão se mesclando e colocando o espectador diante do mito com quem, invariavelmente, qualquer brasileiro aprendeu a se relacionar.
Quem conhece a carreira de Antunes Filho, certamente, vai identificar nesta montagem alguns elementos que aos longos dos anos foram compondo o seu universo. É possível perceber a influência do seu rigoroso método de interpretação e de uma preocupação com a linguagem que busca uma escritura cênica com forte coerência pessoal, embora ele seja capaz de incorporar no seu trabalho elementos da psicanálise junguiana e da filosofia oriental. Mais uma vez, o teatrólogo mostra que o que lhe interessa no teatro é a possibilidade de revelar no processo dinâmico da encenação as estruturas das relações sociais e humanas. Esta depuração, pelo que vimos em Foi Carmen vem atingindo um grau de concentração espantoso. Esteticamente é um espetáculo maduro que nos permite vivenciar a cena com intensidade e infinitas possibilidades de leitura. Ele trabalha com um tempo dilatado, uma iluminação aberta desprovida de efeitos e focalização, e concentra nos atores a essência da mensagem. Um primor que nunca apagaremos da nossa memória.