Fliporto 2010: Camille Paglia

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QUESTÃO DE GÊNERO
Camille Paglia injeta ares de vanguarda no discurso feminista: “O feminino se faz com coragem e ação individual”

Por Rafaella Soares
Da Revista O Grito!, em Olinda

Fotos por Tom Cabral / SantoLima

fliporto1A escritora Camille Paglia protagonizou uma das mesas mais concorridas da 6ª Feira Literária Internacional de Pernambuco (Fliporto), no sábado (13). Mediadas por Gunter Axt, a escritora feminista dividiu as atenções com Márcia Tiburi, filósofa, que lançou dois livros no evento, entre eles O Manto. Mas a longa carreira de Camille, e seu discurso lúcido a respeito da corrente de pensamento feminista, repercutida por ela desde o famoso livro Personas Sexuais, publicado há 20 anos, foram o centro das atenções.

A americana relembrou o início de seu processo pessoal de enxergar com olhar crítico o papel feminino na sociedade: “Eu observava minhas amigas de faculdade tendo casos com professores, mas esses professores não largavam suas esposas em casa”. Em contrapartida, Camille disse que rejeitava este comportamento “humilhante, que denegria as mulheres”, em suas palavras, e se enxergava mais como uma amazona: preferia se arriscar, assumir responsabilidades. Precursora de uma geração que cunhou o termo “feminismo”, Paglia contextualiza sua carreira e a opção de escrever sobre a condição feminina à um momento histórico que favoreceram sua trajetória “As coisas não se esperam, a resposta deve vir no momento em que acontecem”.

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Politicamente, a opinião da autora também é bastante pragmática: “Reflito a respeito da reforma social, mas a questão humana é mais importante”, dispara, para completar: “Sou ateísta mas tenho respeito pelo espiritual”. Camille conserva um vigor físico coerente com a robustez das suas ideias, aos 63 anos. Filha de uma família de imigrantes italianos que encontrava algum preconceito na Nova York da década de 1950, ela lembra de ser questionadora desde os primeiros anos de vida, sempre observando o que se passava na família e no seu em torno. “Não me sentia como menina, não tinha essa percepção. Me sentia como ser humano, e me identificava com os trejeitos masculinos. Nas festas de Hallowen, escolhia trajes masculinos (risos). Minha mãe costurava para mim fantasias de Hamlet, de Napoleão”, lembrou, a certa altura.

Na puberdade, no entanto, Camille conta que começou a experimentar sentimentos antagônicos diante do sexo oposto, pois não gostava de homens, mas se sentia atraída por eles, pelo seu universo peculiar. “Afora questões como de orientação sexual, é preciso se respeitar o poder da natureza”, ponderou. Ao fim da primeira grande explanação da americana, Márcia Tiburi tomou a palavra para interpelar Camille sobre o conceito de gênero: “Ser mulher é um travestimento, que só assumi plenamente há uns 10 anos, porque acho mais divertido, por exemplo, do que me vestir como o Gunter, aqui presente”, provocou, para risadas do público. A apresentadaora do Saia Justa também quis saber sobre a declaração de Camille Paglia, no jornal Sunday Times, dizendo que Lady Gaga é a morte do sexo.

Paglia explicou: “Gênero é uma construção em cima de uma ordem de comportamento. Ao longo da história, houve uma época em que os homens podiam usar tecidos brocados, sapato alto, perucas, maquiagem. Depois, tolheu-se isso, e o homem passou a ser monocromático, com roupas como as de um coveiro. Só nos anos de 1960, permitiu-se uma volta do uso de jóias, roupas estampadas, atitude comporatmental lânguida; as mulheres, por sua vez, passaram a assumir uma gama de papéis que antes não lhes era sinalizado como permitido”.

Ava Gardner, tenho isso muito vivo, ela marcou o momento em que me tornei lésbica
– Camille Paglia

Sobre a cantora pop, Camille reforçou a opinião: “Quando ela (Lady Gaga) apareceu, fiquei entediada, mas pensei: não vou expressar minha opinião, deixe que ainda vai se falar muito sobre isso. Mas ao completar 10 anos do meu artigo em que eu afirmava que Madonna era o futuro do feminismo, senti necessidade de dizer o quão é banal são suas músicas. Normalmente eu teria interesse no seu trabalho clownesco, mas já vi todos estes disfarces em David Bowie, em Cher. Não gosto da ideia da repetição”.

Para Camille, Lady Gaga (ou Stefani Germanota, como ela bem diferenciou) falha ao envergar seus múltiplos disfarces, pois a preocupação dela com essa “montação”, não deixa espaço para mais nada que lhe atribua conteúdo, o que acaba por fazê-la parecer assexuada. “Artistas de verdade se despem quando saem do palco”, pontuou, defendendo ainda que a cantora está estabelecendo um padrão ruim para a geração atual. Tiburi opinou: “Todas elas (artistas pop) são erotizadas. E sexo é uma grande mercadoria. Sexo é um capital, e no mundo moderno, o capital é o novo deus”. Em seguida, Camille Paglia ainda retrucou: “A realidade de Lady Gaga é um pastiche. Observe Hollywood (o produto mais importante que os EUA exportou): a figura atual das mulheres no cinema é dura, como um andróide, nada sexualizada. Lembro de como me atraia pela figura de Liz Taylor antigamente: uma fruta madura transbordando sexualidade. E Ava Gardner, tenho isso muito vivo, ela marcou o momento em que me tornei lésbica”.

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Sobre as brasileiras, Camille, fã e amiga da cantora Daniela Mercury, pensa que expressam melhor a sexualidade, e parecem lidar bem com o assunto. Em contrapartida, na sua opinião, as americanas refletem o puritanismo e a artificialização da beleza feminina. Ainda sobre Madonna, a autora reitera que ela democratizou a ideia da mulher feminina e simultaneamente poderosa. Religião e contos de fadas são totens determinantes para Camille, do modo como as pessoas se enxergam e o que elas querem ou não esconder na sua sexualidade. “Quando frequentava igrejas, lembro de ver imagens de São Sebastião, torso nu, crivado de flechas. Mas a expressão dele não era a de alguém que estava se ferindo, era insinuante. Na história da Branca de Neve, a madrasta parecia uma dominatrix, era uma figura muito erótica, em contraste com a Virgem Maria, chorosa, ajoelhada, vulnerável”.

Na sua opinião, o maior desafio feminino atual na sociedade, ainda é determinado pela fertilidade. A transição do momento em que a mulher jovem, em idade apta para reprodução, tem que escolher entre ser mãe, dar vazão ao impulso de procriação, por estar numa faixa etária que lhe permite uma comunicação direta com a criança, ou deixar esses planos de lado e optar por uma carreira. Estes extremos, como também a escolha de algumas mulheres de orientação feminista em não terem filhos, margeiam as escolhas das mulheres. Mas, pensadoras como Camille Paglia, apontam para o auto-conhecimento e a reflexão politizada do papel feminino como um caminho para estar-se bem e saber-se adequada no seu lugar, seja ele forjado, ou conseguido naturalmente.

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