Contam as histórias que Bárbara era uma mulher muito bela. Nascida onde hoje se situa a cidade de İzmit, na Turquia, no ano 280, era filha única de um pai super protetor que, primeiro, a manteve confinada numa torre diante do perigo que ele julgava ser a sociedade corrupta da época. Depois, com o desinteresse da filha em se casar e obstinada a seguir os ideais cristãos condenados pelo Império Romano, ele a denunciou aos militares para uma série de torturas e sentença de morte. Não satisfeito apenas em saber do sofrimento de Bárbara, ele mesmo decapitou a herdeira. Mas a lei de causa e efeito se fez rapidamente, ao passo que o progenitor foi atingido na sequência por um raio, morrendo no local.
Santa Bárbara, como ficou conhecida a corajosa mulher, é celebrada no dia 4 de dezembro e pode ser invocada contra tempestades e raios, ou quando os fiéis estiverem passando por situações turbulentas na vida. Seu culto chegou ao Brasil, e foi em Salvador, capital baiana, que uma grande festa, considerada Patrimônio Imaterial da Bahia, ocorre desde o século 19.
Adeptos das religiões de matriz africana, especialmente o candomblé e a umbanda, também vestem vermelho (cor predominante em celebrações dedicadas a santos mártires) e saem pelas ruas do Pelourinho para prestar homenagens a outra divindade semelhante: Iansã, uma das principais iabás (orixás femininos) e senhora dos ventos, ligada ao culto dos mortos, que proporciona mudanças e transformações. Associada ainda às guerras e trovões, a deusa do Rio Níger, um dos maiores do continente africano, traz bravura e direção nos momentos desafiadores.
Com as ruas do Centro Histórico abarrotadas de gente, o evento religioso afro-católico começa na alvorada com o repique dos sinos da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e segue com a missa realizada ao ar livre, no Largo do Pelourinho, e, em seguida, a procissão com a imagem da santa.
“Ninguém sabe quando começou essa festa, não há nenhum registro confiável; provavelmente é do século 19. Um dos principais fatos históricos em relação à Festa de Santa Bárbara é a mudança de território, pois ela começou na Cidade Baixa, no bairro do Comércio, onde ficava o mercado e o morgado (espécie de condomínio aberto ao público com residências, lojas e comerciantes de escravizados; ao fundo tinha uma capela) de Santa Bárbara. Após o incêndio no prédio vizinho que atingiu o recinto, a imagem da santa foi transferida para o mercado na região comercial da Baixa do Sapateiro, nos anos de 1910”, comenta o jornalista Nelson Cadena, autor do livro Festas Populares da Bahia: fé e folia. Ele acrescenta que a festa possui ligação com o mar e, antigamente, os jornais chamavam de Festa dos Peixeiros, já que os protagonistas eram os vendedores de peixes e mariscos, além das mulheres que comercializavam carne. Posteriormente, os espanhóis tomaram a frente da organização, já que possuíam o maior número de boxes no mercado da Baixa do Sapateiro.
Invisível aos olhos da camada mais privilegiada e por boa parte da imprensa, que nem sequer divulgava o ocorrido, a cerimônia permaneceu excluída do calendário dos festejos típicos da cidade por muitas décadas. O motivo: racismo e aversão aos pobres, visto que a população negra da classe trabalhadora, quando se reúne, é julgada como marginal. Cadena frisa que o público do novo território é formado por comerciantes, feirantes, o povo de santo da umbanda e do candomblé, moradores do Centro Histórico e, a partir da década de 1970, pela classe média.
Com o fechamento do mercado em 1987, houve uma pausa nos festejos tradicionais de Bárbara; a imagem foi doada em cartório para a Irmandade do Rosário e lá permanece até os dias atuais, só saí para a procissão do dia 4/12. Somente em 1998, com a volta do Mercado de Santa Bárbara, na Baixa do Sapateiro, a festa tornou a ocorrer. “Vejo um interessante renascimento, a festa estava praticamente morta e de repente começou a ter destaque na mídia. Agora, repaginada, apresenta um culto ecumênico do lado de fora da igreja onde há uma celebração católica ao mesmo tempo sincronizada com cânticos nagôs (de língua iorubá) numa convergência com as tradições afrobaianas”, observa o jornalista.
Um dos pontos altos da festa é, durante uma das paradas da procissão, a saudação no Quartel do Corpo de Bombeiros da Barroquinha, já que Santa Bárbara é a padroeira da corporação. Acontece um animado banho de mangueira coletivo, ótimo para amenizar o calor baiano.
Atualmente, é um dos acontecimentos mais importantes e concorridos da agenda festiva de Salvador, juntamente com a Festa de Iemanjá, a Lavagem do Bonfim e, claro, o Carnaval. Cadena diz ter parado de contar quantas festas populares existem na Bahia; em sua última somatória, contabilizou mais de 300.
Responsável e detentora dos Festejos de Santa Bárbara há 25 anos, a Irmandade dos Homens Pretos recebe todo o apoio financeiro para a comemoração através do poder público. “Professamos a religião Católica Apostólica Romana e respeitamos todos e todas de diversos credos que venham a acrescentar a fé e o bem por meio de suas manifestações. Desde que estas não deturpem a imagem da irmandade e ou da nossa igreja, pois desejamos que todos ajudem a edificar o reino de Deus aqui na terra, nos unindo como irmãos e irmãs em defesa de um diálogo inter-religioso sem discriminação”, declara Adonai Passos, presidente da instituição.
Santa Bárbara não é Iansã
A fotógrafa Amanda Tropicana começou a registrar a festa em 2014 e até hoje não perdeu uma edição. Para ela, essa é uma das poucas festas em que o profano dialoga com o sagrado, pois o “couro come” com tambores, roda de samba e muito “furdunço” depois que a santa passa em procissão pelas ruas do Centro Histórico. “O que me chama a atenção é a presença das mulheres. Muitas! Vestidas de vermelho e branco, algumas segurando rosas vermelhas, com muitos sorrisos e lágrimas de emoção. Eu sou uma emocionada por natureza, e esta festa específica me arranca muitos choros de tanto sentimento com tudo que vejo e registro ao meu redor”, compartilha a fotógrafa.
Amanda diz se conectar com Iansã todos os dias, principalmente por ser filha de um terreiro de candomblé, local que cultua todos os orixás. Se viver requer fé para aliviar um pouco o peso do mundo, existe uma força que vem da devoção que, no caso, é a energia da deusa na vida de quem ela acompanha. “Sou filha das águas, mas tenho ela como uma madrinha. Ela está comigo o tempo inteiro, independentemente de onde eu esteja, e para mim, isso é tudo”.
O que pode ser motivo de confusão para alguns, a jornalista e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Cleidiana Ramos, resolve rapidamente: Santa Bárbara não é Iansã; elas são distintas, apesar de algumas semelhanças. Na sua análise, equiparar a santa virgem com a divindade africana não faz sentido. “Iansã é casada com vários orixás, de Ogum a Xangô, sendo este último a face de uma mesma moeda, o feminino e o masculino juntos”.
Esse trânsito fluido de gênero nela nunca foi problema; e as mulheres de Iansã são representadas de forma altiva, sensuais, que não devem explicação sobre as suas decisões e principalmente a respeito da sua sexualidade. Então, por que associar ela a uma virgem, assexuada, católica?”, reflete Cleidiana, recordando que Bárbara também é rebelde e não aceita o papel que lhe é reservado. Ela prefere morrer e, dessa maneira, se torna encantada. Tais semelhanças conectam as duas, porém uma não ocupa o lugar da outra, são perfis únicos.
Em quase todas as festas de largo em Salvador, eventos de verão que recebem este nome devido à dicotomia da sua ocupação espacial conectando um ambiente particular – as igrejas – e público – área externa e arredores dos templos, é constante o diálogo com o catolicismo e práticas afro-brasileiras. A pesquisadora não vê com maus olhos, e sim como uma das muitas maneiras que se usou para a devoção popular sobreviver às ortodoxias. “São processos complexos e, por isso, tenho evitado falar em sincretismo porque a palavra ficou esvaziada”.
A professora de português Margarida Macêdo desde 2010 aproveita a oportunidade de estar presente no dia de quem considera uma grande amiga. Costuma levar os alunos estrangeiros para conhecer a riqueza e diversidade das festas soteropolitanas. Num clima de convivência harmoniosa entre os fiéis, Margarida percebe a manifestação da fé estampada em cada rosto; uma emoção profunda toma conta do entorno como uma entrega de si. “O povo se aglomera debaixo de um sol e de um calor escaldante, nada parece trazer incômodo diante da vontade de estar ali naquele instante, cantando, rezando.
“Para mim, o auge da festa é no momento da comunhão, em que hóstias são oferecidas aos fiéis por religiosos católicos, enquanto as baianas vestidas de vermelho saem da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos distribuindo acarajés às pessoas como um ato de comunhão. Comungo com a mesma fé nesses dois elementos sagrados, como se um completasse o outro”, relembra Macêdo que adora comer o tradicional caruru de Santa Bárbara, prato de origem africana servido nas praças e mercados próximos do centro.
Igualmente protegidas por Iansã, as baianas de acarajé fazem questão de serem gratas a quem cuida delas, sendo muito comum no dia da festa encontrá-las vendendo o famoso quitute.
Comida para a santa
Todo mês de dezembro, ao longo de trinta e poucos anos, Ana Regina Santana é a responsável por cozinhar o caruru da família. Desde o início do processo, ela não deixa ninguém encostar nos alimentos ou entrar na cozinha; prefere fazer tudo solitária e se prepara antes com banhos de ervas e muita oração. A crença é de que a sua energia precisa estar em paz e “limpa” para elaborar o prato da protetora do seu orí (cabeça) e de seu restaurante no bairro do Rio Vermelho. Quem chega no espaço é recepcionado por uma enorme imagem de Santa Bárbara. Só tem um detalhe: o caruru de tia Ana, como é conhecida, nunca é no 4 de dezembro, sempre posteriormente. E, por não ter uma data fixa, ela avisa a surpresa dois dias antes e distribui centenas de quentinhas com a oferenda para Iansã. Quem quiser, é só aparecer ao entardecer na rua Almirante Barroso.
“Isso foi uma promessa que fiz há muitos anos, pedindo a Santa Bárbara que ajudasse minha mãe a conquistar sua casa própria. Eu percebia o sofrimento, mesmo sem ela compartilhar nada com os filhos. Clamei à santa e dei a minha palavra de que, se Mainha saísse daquele sufoco, eu faria todos os anos o caruru com muito amor. Deu tudo certo, realizo minhas entregas com muita satisfação”, revela tia Ana, que se orgulha de ser filha de Iansã, uma orixá combatente e retada, palavra do dicionário baianês que significa determinada.
Na receita, não pode faltar: quiabo, azeite de dendê, castanha de caju, amendoim, gengibre e camarão. Cozinheira da culinária afro-baiana, Marlene Jesus da Costa aprendeu com a avó os sabores da comida ancestral e afetiva, essencial no trabalho de cura com os alimentos. “O que mais temos na memória negra é o axé da comida. Nosso caruru é divino, ele traz cor e energia, sendo uma refeição servida em grupo com a vitalidade das crianças. O Brasil e o continente africano possuem uma ligação cultural muito forte. Estive no Benin e pude ver o acarajé, o abará e o acaçá servidos lá. Muitas tradições não foram perdidas; o modo como mexemos e cortamos a comida é bastante similar”, pontua Marlene.
Ao indagar se o caruru é realmente um prato exclusivo de Iansã, Vovó Cici de Oxalá, Egbomi (autoridade religiosa) do Terreiro de Candomblé baiano Ilê Axé Opô Aganjú e contadora de histórias, explica que a comida não é nem de Oyá nem de Xangô: é simplesmente um ebó da cultura afro-brasileira destinado aos abikus.
“O abiku faz parte da sociedade Egbé Orun, são as crianças nascidas para morrer”, descreve Cici ao narrar um mito iorubá sobre um rei casado com uma mulher abiku que perdia todos os seus filhos. Certa vez, ela estava novamente grávida e sabia da importância de gerar um filho homem para o marido; caso contrário, ele seria destituído do cargo assumido pelo irmão. Disposta a salvar a criança e o matrimônio, a mulher buscou auxílio com um babalawo que a instruiu a ‘enganar’ os espíritos abikus que possivelmente viriam para levar mais um de seus filhos.
Parte do plano aconselhado foi simular o enterro da criança, utilizando um boneco dentro do caixão, junto a uma caixa contendo os brinquedos, roupas e as comidas sagradas, incluindo o caruru. Vendo o ritual acontecer, os abikus seguiram o cortejo fúnebre, pensando que a criança estava desfalecida. Com o pequeno caixão e a caixa entregues no rio para Oyamésàn, a estratégia poderia funcionar. “Porém, Iansã sabe que o que está ali não é um abiku, e sim uma oferenda para que a morte esqueça da criança e ela possa ter uma condição normal, e assim aconteceu”, finaliza Cici.
É poesia, é vendaval
Nascida na umbanda, Mãe Taiane Macêdo, sacerdotisa do terreiro Cumoa, nutre um amor por Iansã desde criança. Na adolescência, escreveu um ponto (pequena cantiga) expondo a sua adoração pela iabá que se transforma ora em búfalo, ora em borboleta, dosando a bravura com a leveza da liberdade. Figura fundamental em muitos capítulos de sua caminhada, como na cura do câncer de mama, Mãe Tai sabe da importância de se afirmar como praticante de uma religião genuinamente brasileira. Ela atenta que, mesmo com o racismo e a intolerância religiosa latentes, no acontecimento da Festa de Santa Bárbara, ver tantas pessoas vestindo vermelho e estampando as guias (colares ritualísticos) no pescoço, é comovente.
“Precisamos aumentar a nossa voz, gritar, para não sermos calados. O Cumoa é um terreiro ousado, fixado em um bairro nobre de Salvador, e não temos vergonha de mostrar que somos sim macumbeiros, vestimos branco e honramos nossos ancestrais. Episódios de discriminação acontecem recorrentemente entre os filhos da casa, isso é assustador. Sou adepta do autoconhecimento e, para realmente curar essa sociedade adoecida, precisamos, primeiramente, olhar para dentro. Quando eu me curo, eu curo também o outro”.
“Ela me acompanha ao nascer do dia, mulher guerreira incorporo a sua beleza. Não temo mal nenhum, sou filha de quem sou, Eparrei Oyá minha mãe e meu amor. É poesia, é vendaval, Iansã em terra é temporal!”
(Trecho da canção “É poesia, é vendaval” de Mãe Tai Macedo)
Cleidiana entende a relevância das festas populares baianas pelo movimento econômico que elas estabelecem através dos múltiplos empregos formais e informais e de toda correria que envolve conceber eventos para mais de 2 milhões de pessoas, como foi o caso da Lavagem do Bonfim em 2023.
“As festas não eliminam as nossas tensões diárias que envolvem, por exemplo, o racismo. A contradição é que muitos festejos são resultado das heranças africanas deixadas para os seus descendentes, entretanto, eles são os que menos lucram com esse tipo de estrutura. Foi preciso criar mecanismos de sobrevivência nos negócios; os trabalhadores querem garantir o seu dinheiro, então, com ou sem licença para vender algo que dê o retorno financeiro, cada um dá o seu jeito de girar a economia. Não é unicamente do ponto de vista simbólico, da fé, é um dia da semana festivo em que muitos garantem o seu sustento vendendo comidas típicas e o que mais fizer parte do universo festivo”, explana a especialista.
A Festa de Santa Bárbara 2023 acontece no dia 4/12, Largo do Pelourinho. Às 6h acontece a “Alvorada e Repique dos Sinos” e às 8h a Missa Campal, seguida de Procissão pelas ruas do Centro Histórico. O caruru com samba da Igreja do Rosário dos Pretos será 06/12, a partir das 12:00h.
Calendário de Verão em Salvador, ciclo das festas populares:
27/11: São Nicodemus
04/12: Festa de Santa Bárbara
8/12: Nossa Senhora da Conceição da Praia
13/12: Santa Luzia:
13/12: Nossa Senhora da Boa Viagem e
31/12 e 01/01: Bom Jesus dos Navegantes
06/01: Festa dos Reis
Quinta-feira que antecede o segundo domingo após o Dia de Reis: Lavagem do Bonfim
27/01: São Lázaro
02/02: Festa de Iemanjá
13/02: Lavagem de Itapuã
20-25/02: Carnaval.