O FIM DE ZUCKERMAN?
Novo livro de Philip Roth lançado recentemente no Brasil marca a provável despedida de um dos mais emblemáticos personagens da literatura contemporânea
Em homenagem a Philip Roth, que morreu nesta terça (22), damos novo destaque a nossa crítica de Fantasma Sai de Cena, um dos muitos livros celebrados de Roth.
Pelos olhos de Nathan Zuckerman, Philip Roth observava tudo ao redor. Desde a primeira aparição em My Life As A Man (1974) e depois como protagonista The Ghost Writer (1979) – ambos ainda sem tradução no Brasil – o personagem-narrador atravessou nove romances e quatro décadas como um fiel mensageiro do ideário do escritor de origem judaica. Temas, por assim dizer, muito próprios à sua identidade enquanto escritor, como literatura, política, guerra, sexo, judaísmo e, ultimamente, a morte.
Pela semelhança de personalidade, tornou-se lugar comum apontar Zuckerman como alter-ego de Roth. Uma relação que parece ter chegado ao fim. Pelo menos é o que afirmou o próprio autor ao lançar, em 2007, nos EUA, Fantasma Sai De Cena (Exit ghost).
Mas o que faria um dos maiores escritores vivos contemporâneos, alçado ao panteão literário ao lado de Ian McEwan, Gabriel García Márquez e Salman Rushdie, aniquilar sua faceta fictícia mais célebre? Um subterfúgio, no mínimo, estranho. No final do livro, a morte também não fica explícita. Há talvez aí algum jogo de marketing para alavancar ainda mais as tiragens – o que vem dando certo, pois a obra figura, há pelo menos três semanas, no ranking dos dez mais vendidos no País.
Estafa criativa, com certeza, não é. Com um tino surpreendente, Roth lança obras-primas quase que em sequência, aclamadas por leitores do mundo todo, como Complexo de Portnoy, Pastoral Americana e Complô Contra a América. Agora sua aura deve ficar ainda mais pop com o filme Elegy, baseado no livro O animal Agonizante e estrelado por Penélope Cruz e Ben Kingsley, que acaba de estrear nos cinemas dos EUA.
A explicação deve ser só uma: a lente obsessiva sobre a morte. Assim como em Homem Comum, penúltimo livro de Roth, lançado no Brasil em 2006, o autor põe o protagonista às voltas sob a desconfortável situação de estar à beira do fim. Com 75 anos de idade, o escritor americano se mostra cada vez mais intrigado em abordar esse assunto – um tabu espinhoso para a cultura ocidental – mas não para si próprio.
Em O Fantasma Sai De Cena, ele mostra o ocaso de um escritor quase na mesma idade que ele (71 anos), que volta a Nova Iorque 11 anos depois para se tratar de um problema de incontinência urinária, decorrente de um câncer de próstata. Um retorno de alguém que revê seu passado lúcido (embora com severos lapsos de memória) e sem auto-complacência. Pelo incrível argumento e a narrativa objetiva e apurada já conhecida, não é exagero afirmar que este livro é mais um a engrossar sua estante e preciosidades. É, simplesmente, uma obra genial.
A genialidade de Roth está em radiografar a sociedade contemporânea sem receio de ser engolido pelo mofo. Com uma lupa cirúrgica, ele investiga os medos e as angústias atuais que irão repercutir nas próximas gerações, por isso se torna um clássico. Um dos pontos nevrálgicos de Fantasma… é, por assim dizer, um tema pequeno-burguês, mas que acomete hoje a todos como uma convulsão social: a solidão. Ou melhor, a velhice. O mundo está ficando mais velho (principalmente nos países desenvolvidos), e Nathan é um dos que sofrem com a proximidade do possível fim.
Após anos morando na pacata região de Berkshire, na Nova Inglaterra, revê amigos e antigos amores em Manhattan, entre eles Amy Bellete, ex-namorada há 50 anos, e pessoas novas, como um investigador literário que pretender escrever a biografia de E.I. Lonoff, ex-professor de Zuckermann que chegou a morar com Amy, já falecido. Mas uma delas em especial irá renovar as esperanças do escritor em viver novamente, em um caso, antes de consumar, proibido – Jamie Logan, esposa de Billy Davidoff, quarenta anos mais nova.
O sexo – um dos temas mais recorrentes à obra de Roth – e a morte são o pêndulo que conjugam as forças do livro. Embora amargurado pela decadência física, Zuckermann conserva o ímpeto humano de sobreviver e continuar vivendo – sem se refugiar longe de suas próprias reminiscências. A carga dramática do livro é reforçada por diálogos teatrais que são inseridos no decorrer da narrativa – um recurso que torna a obra ainda mais pulsante e interessante.
Outro aspecto engenhoso diz respeito ao contexto histórico na qual a história se passa, mais precisamente em 2004, às vésperas da segunda eleição de George W. Bush, três anos depois do 11 de Setembro e após as guerras do Afeganistão e do Iraque. Apesar do livro se centrar no perfil individualista de Nathan Zuckermann, o enredo tem um pano de fundo histórico bastante sobressalente. Pelo seu alter-ego, Roth critica a política bélica de Bush e o estado de torpor e alienação da sociedade norte-americana. Com uma sutil metáfora, o autor emblematiza seu personagem-narrador como um espelho do sentimento de agora: a mea-culpa de olhar para trás e tentar consertar os erros de outrora. Personagem-síntese histórico, que deve ficar cravado na literatura mundial, assim como Septimus Smith, veterano de guerra que enlouquece em Mrs. Dalloway, de Virginia Wolf.
Não se sabe, com certeza, se esta é, de fato, a despedida de Nathan Zuckerman. É bem provável que o mártir seja ressuscitado. Independente disso, durante esses anos, ele, ao menos, cumpriu sua meta, que foi o de simbolizar um momento-chave da história humana.
FANTASMA SAI DE CENA
Philip Roth (trad. Paulo Henrique Britto)
[Companhia das Letras, 284 págs., R$ 38]