DELICIOSA DECADÊNCIA
Rosane Mulholland surpreende mais uma vez a platéia com drama novelesco de Recheinbach
Por Raphaella Spencer
FALSA LOURA
Carlos Recheinbach
[Falsa Loura, Brasil, 2008]
Os desavisados que se proponham a assistir ao mais novo filme de Carlos Recheinbach, Falsa Loura, podem achar que se trata de um filme novelesco, meio tosco, que explora o que o popular e o brega têm de mais pitoresco. Mas mesmo com todas essas “primeiras impressões” vai ser difícil, não se deixar levar pelo dia a dia da operária Silmara, interpretação surpreendente da atriz Rosanne Mulholland, muito mais que uma carinha bonita.
Aqui, defino como espectadores desavisados, os que ainda não estão familiarizados com o cinema cheio de personalidade desse filho do underground paulista da decada de 70, um dos “Bocas do Lixo” Carlão, que esteve no Recife em março numa sessão-debate no cine-teatro Apolo, no qual falou sobre seu Filme Demência, obra cheia de auto-referências em que um dono de uma fábrica de cigarros se vê perdido depois de descobrir a falência da fábrica que herdou de seu pai e mergulha numa noitada em busca de uma visão, uma praia que lhe atordoa durante todo o filme. Filme demência como as demais obras do mesmo, é cheio de referências poéticas e intelectuais como as declamações de passagens do mito de Fausto de Goethe, que contrastam com a bizarrice do submundo da noite paulista com direito a muitos nus, alcool, drogas e rock’n’roll.
Sim esse é um dos exemplares mais iblemáticos da atemporalidade do cinema de Carlos Recheinbach, artista e obra com ar de porra-louca, mas que na verdade é responsável por uma das maiores filmografias do Brasil e por uma das primeiras obras que no conjunto trazem marca registrada. Depois de ser apresentado a qualquer um de seus filmes, vai ser muito fácil reconhecer seu estilo e a seriedade dos temas que permeiam suas tramas, por mais desvairadas que pareçam inicialmente.
Em Falsa Loura, não é diferente, Com casca de loira poderosa, forte, decidida que exala sexualidade, Silmara, pouco a pouco vai se revelando frágil, insegura, romantica, só mais uma garota suburbana que concilia a pesada rotina de uma fábrica com a barra de sustentar a casa e o pai Antero (João Bourbonnais), um ex-presidiário piromaniâco, deformado pelo fogo. Mas todas as falsas luzes, os falsos movimentos de camera que flutuam invadindo a realidade dessa protagonista e os falsos clichés que a cercam, companheira da fábrica gata burralheira que vira cinderela Briducha (Djin Sganzerla), irmão cabelereiro gay bem sucedido Tê (Léo Áquila), são só simbolos que empreguinam a realidade da loira e acabam tornando sua realidade fílmica um misto entre a chatisse do seu dia-a-dia de operária e a vida idealizada de loura poderosa.
Sonhos personificados pelo roqueiro Bruno de André (Cauã Reimonde) vocalista da banda Bruno e seus Andrés, com quem viverá um rompante romântico com direito a caminhadas em planos abertos na beira da praia e fusões entre carícias e as ondas do mar. Além claro do ícone máximo, Luís Ronaldo (Maurício Mattar), que entra na vida de Silmara já nos 15 minutos finais do filme e reintera a crueza da distância entre o sonho e a realidade já introduzida no pseudo-romance com o roqueiro e reforçada pela forma como esse ídolo romântico vai entrar e sair bruscamente da vida de Silmara no melhor momento do filme, seus quinze minutos finais. Em comum, ambos vão cada um a sua forma, explorar sua beleza e se aproveitar de suas figuras pops, para ter de Silmara o que lhes interessa.
E é em meio a esse jeito todo próprio de contar uma históra que os tais desavisados, podem se perder no começo de falsa loura, pois diante de uma sinopse séria podem procurar um realismo e uma sobriedade que não resistem ao estílo fantasioso do diretor que pode ser interpretado, inicialmente, como tosqueira despropositada, mas que na verdade é o que há de mais sério e bem executado. Pois por trás de tantas fantasias e caricaturas está a realidade, de quem vive um dia-a-dia exaustivo procurando não se sabe pelo que, consumindo ícones e padrões de beleza impostos não se sabe por quem, mas que acabam dizendo a essas mulheres muito pouco sobre quem elas realmente são. E é a essa descoberta de quem realmente é a Silmara morena e trabalhadora que vamos ter o privilégio de acompanhar nessa pequena imersão na vida de uma Falsa Loura retratada por Carlos Recheinbach.