Pitty supera dramas pessoais com um disco mais confiante e pesado
Por Renata Arruda
Pitty dispensa apresentações. Há pouco mais de uma década desde o lançamento do bem-sucedido Admirável Chip Novo, em 2003, a cantora baiana se consolidou como líder de uma banda de rock que sempre soube dialogar com a plateia do seu tempo. No período em que o gênero esteve em baixa, ela também estava interessada em explorar outros caminhos, formando com seu amigo e guitarrista Martin Mendonça o duo de folk-indie Agridoce (cujo primeiro single “Dançando” foi lançado pelo site Scream & Yell com matéria desta que vos fala) – projeto que levou muitos de seus fãs a temerem o fim da banda. E foi durante este período que Pitty passou por momentos difíceis. Um dos mais impactantes foi o suicídio do amigo de adolescência Peu Sousa, guitarrista com quem compôs “Equalize”, um dos maiores hits da sua carreira. Ela também enfrentou um grave problema de saúde que chegou a deixar a cantora internada na UTI e um bom tempo sem subir aos palcos.
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Pitty aproveitou o tempo em que ficou de molho para reunir forças enquanto esperava o momento certo para voltar mais confiante do que nunca. O resultado vem em forma de SETEVIDAS, que acaba de ser lançado pela Deck, com produção de Rafael Ramos e mixagem de Tim Palmer e que traz o baixista Guilherme Almeida (ex-Pública) no lugar de Joe Gomes. Permeado pela iminência e inevitabilidade da morte, os obstáculos imprevisíveis da vida, a luta pela sobrevivência e a transformação, o álbum se estabelece como o mais interessante da banda, onde Pitty aparece como letrista mais reflexiva e inspirada, procurando evitar cair no clichê ao tratar de assuntos pessoais. Espécie de primo mais velho de Anacrônico (2005), a personagem que se apresenta em SETEVIDAS é aquela que perdeu a ingenuidade da juventude ao enfrentar a vida e ainda que uma parte sua tenha morrido, a outra se renovou para ressurgir muito mais forte. Pitty concordou em responder às perguntas de O Grito! sobre o disco, falando sobre a inspiração para compor cada faixa e ainda dizendo o que pensa a respeito da declarada “morte do rock”. O resultado você confere abaixo:
Você passou fez uma pausa para trabalhar com o Agridoce e ainda passou por situações complicadas durante o hiato entre o Chiaroscuro (2009) e SETEVIDAS – é possível perceber um tom mais sombrio nos temas abordados no disco novo. Pode contar um pouco sobre a concepção do álbum e as principais diferenças entre ele e os anteriores?
Acho que a diferença entre este e os anteriores é que, com o tempo, vai-se acumulando experiência e isso ajuda muito na hora de fazer um disco. É como se hoje a gente conseguisse chegar mais rapidamente num resultado que se imagina na cabeça em termos de sonoridade, e acho que isso faz parte do aprendizado mesmo. Óbvio que ainda tem muito pela frente e não acaba nunca, mas parece que a cada disco fica mais claro o caminho para se chegar no que se quer. A concepção dele foi sendo construída à medida em que se fazia; na verdade percebo mais o que é cada disco depois que ele está pronto. Na hora da “feitura” mesmo é mais subjetivo; sensações, intuição, experimentar coisas.
Hoje se fala bastante sobre a morte do rock e o jornalista André Forastieri comentou que não apenas o espírito provocativo se perdeu como no Brasil o rock é “comportado”. Você também enxerga que o rock continua apenas para um nicho, tendo dificuldades para atingir um público maior?
Acho que não, mas enxergo fases. Mais popularidade, depois uma certa infantilização, depois menos popularidade e compromisso com demanda externa – o que considero ótimo porque aí o que manda é a vontade e a expressão, é feito pra ser dessa forma. Particularmente, estou numa fase bem otimista em relação ao rock. Pelas coisas que tenho visto, pelos discos que estão sendo lançados, pelas rádios desse segmento voltando a ativa. Acho que o rock não morre, ele se reinventa. Mas quando você se apega a velhos conceitos e estereótipos fica difícil enxergar isso.
O que SETEVIDAS representa para você?
Um passo importante, uma realização pessoal e parte de uma busca que não tem fim.
Site oficial: http://www.pitty.com.br/
SeteVidas, faixa a faixa:
01. Pouco
Minimalismo no som, no papel é poesia concreta. Vontade de tudo. O eterno “vir-a-ser” de Parmênides. Repetição do texto de formas diferentes, como uma afirmação de uma ideia.
02. Deixa Ela Entrar
Uma conversa interna. Ficar de bode do próprio existencialismo. Essa briga interna das vozes e personas digladiando; pensar demais, prós e contras, não conseguir evitar de se aprofundar sempre e depois ver como isso é cansativo. No refrão, a constatação do imprevisto, do se abrir ao acaso, do racionalizar menos e intuir mais. Na música, buscamos um flow contínuo, como uma onda, como um diálogo.
03. Pequena Morte
Essa foi uma demo que eu e Martin tínhamos feito há um tempo. A música estava pronta, e o pulso e a batida dela me soavam sensuais. Faz parte de uma busca recente pelo “roll” mais do que pelo “rock”, mais pelo blues, a parte curvilínea. E essa coisa sinuosa me fez pensar numa letra sobre instinto, pele, a inevitabilidade de ceder à nossa própria natureza animal. “La petite mort”, o eufemismo que os franceses usam para se referir ao orgasmo.
04. Um Leão
Sentei com o violão no colo na intenção de fazer uma música dançante. E saiu esse 5/4. Podem até dizer que ritmo composto não é necessariamente um convite à dança, mas eu discordo. Acho que estava numa fase de reconhecer e tentar traduzir nosso lado animal e instintivo, porque essa letra também tem a ver com isso. Pro refrão eu tinha uma imagem: a natureza da relação de dependência, confiança e um certo sadomasoquismo entre um atirador de facas e sua assistente. E isso aplicado ao contexto de quaisquer outras relações na nossa vida cotidiana.
05. Lado de Lá
É um réquiem. E uma pergunta. Sentei ao piano e saiu um blues. Com os meninos, aprimoramos o arranjo; e como gravamos ao vivo, a jam session do final cada vez saía diferente. Esse foi o take escolhido. Patti Smith escreveu um texto e me trouxe a imagem do barqueiro que, em tantas culturas e mitologias, faz a travessia para o outro lado.
06. Olho Calmo
Essa fizemos todos juntos no estúdio, durante um ensaio. Fluiu muito rapidamente, todos se encaixando de pronto. Me debati um pouco para fazer a letra depois, porque o espaço do verso e refrão eram pequenos. Precisava construir frases sintéticas e resumir uma ideia em poucas palavras. A ideia de com o tempo, aprender a hora de falar e de calar, de gritar e de ouvir, saber que briga vale a pena brigar. E me veio a imagem de um cão velho e sábio que não gasta tempo ladrando a toa; mas, quando precisa, sabe se defender.
07. Boca Aberta
Ansiedade. Estímulo por todos os lados. O Ter para Ser propagado à exaustão. A medida de todas as coisas. A negação do maniqueísmo; tudo é bom e ruim, depende de quanto, como e por quê. Eu tinha escrito como um poema, e guardado. Na época do disco, mandei para Martin e um tempo depois ele apareceu com a música, e uma pegada flamenca que achei muito interessante.
08. A Massa
Um texto que eu já tinha, e lapidei a métrica para caber na música. Uma reflexão pessoal; como estamos, e para onde vamos? Como vamos? Estamos desenvolvendo senso crítico ou sendo arrastados pela corrente? E aí pintou a analogia com a culinária; a paciência e o cuidado que se tem quando se quer um bolo bem feito, o processo de fermentação, a qualidade e quantidade dos ingredientes. Que resultado se quer da massa, e como ela está sendo tratada para chegarmos nisso? A música tem uma batida mais dura, buscava a sensação de fábrica, a repetição de um operário na indústria, cenas de Tempos Modernos de Chaplin.
09. SeteVidas
Resiliência. Passar pelas coisas e se reerguer. É clichê, mas é o que é. Nunca é fácil pra ninguém. A experiência transformadora de passar por um problema de saúde. Na música, pro refrão, queria achar o balanço do Kinks e Sonics, música de garagem dos anos 60, aquele groove. O pianinho-martelo dos Stooges. Mais uma vez, o “roll”. Deu trabalho, experimentamos variações até chegar nessa levada. Pra estrofe, buscamos uma vibe Miami Bass, Funkadelic, Run DMC, funk carioca old school. Pra dançar, mesmo. O sopro no refrão somando no “wall of sound” pra trazer o soul.
10. Serpente
Respirar e ter calma porque amanhã é outro dia e o melhor é ir um de cada vez. Transformar cobre em ouro, como na alquimia. Não se deixar amargurar. Enxergar os ciclos, morte e renascimento, eterno retorno, o mantra de Shiva costurando no final a ideia de há que se destruir para construir. Na música, é a faixa onde a experiência com a música afro é mais evidente. Samba-reggae, e afoxé. Sensação de quarta-feira de cinzas, “corpos ébrios em confusão”, fim de Carnaval e alguém descendo uma ladeira, o dia raiando de volta ao normal.