A série Faça Uma Playlist traz contos inspirados em clássicos musicais de diferentes gêneros, épocas e estilos. Os textos são assinados por Ismael Machado, roteirista e escritor paraense, radicado no Rio de Janeiro, autor do livro Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem, entre outros. As artes são de Igor Alves, ilustrador e DJ paraense, atualmente residente em Portugal.
A verdade é que eu usava All Star e ela coturnos. Em outras palavras, eu ouvia Bob Dylan, Janis, Led Zeppelin, Beatles, Stones e um monte de coisas assim, e ela era fascinada por umas coisas punks, góticas, darks, pós-punk. Joy Division, Smiths, The Cure, Bauhaus, Echo and The Bunnymen.
Eu usava os cabelos grandes, caindo nos ombros. Os dela eram curtinhos, com mechas que mudavam de cor de tempos em tempos. Ela gostava de roupas pretas e eu de jeans e camisetas brancas.
Mas a gente até que se deu bem. Nos conhecemos na fila da eleição de 1989. Era a primeira vez que se podia votar para presidente depois de muito tempo. E, sabe como é, quem é diferente – ou pelo menos se vê assim- é atraído por quem julga estar no mesmo navio, mesmo que em cabines diferentes.
Fui eu quem puxou assunto. Não consigo ficar calado muito tempo. Tenho de conhecer gente, conversar, trocar ideias. De início ela pareceu desconfortável, bicho desconfiado. Mas os monossílabos iniciais foram se espichando.
O nosso voto seria igual. Lula, claro. Ela sonhara com Brizola no primeiro turno, depois de ter cogitado anular o voto. Sabe como é, discurso anarquista, niilista, essas coisas que o povo, de verdade, nem entende direito, mas repete.
Aí a gente se viu de novo no lançamento de um livro de um escritor maravilhoso, o Caio Fernando Abreu. Dessa vez foi ela quem se aproximou. Saímos caminhando pela noite, conversando sobre literatura. Melhor assim, já que sobre música não chegamos a um consenso naqueles dias. Eu amava rock progressivo e ela torcia o nariz para qualquer solo de guitarra mais demorado.
E trocamos livros. Ela me falou de Ana Cristina César e eu mostrei a ela umas coisas antigas de Carlos Heitor Cony. E nos encontramos em Marcelo Paiva.
Mas não adiantou eu gravar umas fitas. Ela gravou por cima e me mandou de volta com as bandas que ela gostava. Ela chorou quando Kurt Cobain morreu e eu disse que entendia. Fiz o mesmo quando John Lennon morreu.
E foi assim. O tempo passou e um dia a gente percebeu que nossas diferenças não eram assim tão difíceis de serem superadas. Há uns vinte anos acordamos juntos todos os dias. Nossa filha já é adolescente e ouve um pouco de tudo.
Nós? Bem, eu continuo ouvindo ‘Guitar Man’ na versão original do Bread. Ela prefere a do Cake. E ninguém briga por isso.
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