A série Faça Uma Playlist traz contos inspirados em clássicos musicais de diferentes gêneros, épocas e estilos. Os textos são assinados por Ismael Machado, roteirista e escritor paraense, radicado no Rio de Janeiro, autor do livro Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem, entre outros. As artes são de Igor Alves, ilustrador e DJ paraense, atualmente residente em Portugal.
A cidade despertara com um calor seco e asfixiante naquela manhã de janeiro. No hospital, o calor externo era compensado pelo excelente sistema de refrigeração interna. O hospital era uma das principais referências em tratamento de câncer no Brasil.
Mas não era nisso que pensava naquele instante. Os passos demoravam a se definir. Entre apressados e claudicantes. Reticentes e firmes. Nas mãos um prosaico picolé. Banal em outras circunstâncias, mas prenhe de significado naquele momento. O corredor parecia, como das outras vezes, maior do que era na realidade. A sensação era quase sempre a mesma. As paredes claras, frias. Sabia: elas não trariam as respostas certas, as que gostaria de ouvir.
Abriu a porta devagar. Não conseguia se acostumar com tudo aquilo. Aparelhos, fios, tudo claro, limpo, mas frio. Foi recebido com o sorriso de sempre. Percebia não haver mais a mesma intensidade de antes. Mas a força interna era perceptível. Os olhos brilharam como os de uma criança quando viram o picolé. Enquanto o pai saboreava o doce gelado, o filho viu passar à sua frente, como num velho filme em preto e branco, algumas imagens antigas. As festas de fim de ano, quando o pai, travestido de seu maior ídolo, Elvis Presley, fazia um karaokê improvisado com diversas canções do ‘King’, como ele o chamava. De ‘My Way’ a ‘Sylvia’, passando por ‘Love me Tender’ e ‘Kiss me Quick’. Mas a que ele, o filho ainda garoto, realmente gostava, era de ‘Early Morning Rain’.
Quando cresceu se afastou daquelas canções, assim como do pai. Vida, mundo, ideias a separá-los. Até aqueles dias. Os dias recentes.
“Amanhã você vem, mas traz o meu picolé diferente”, o pai disse ao filho, a voz saindo fraca. O filho consultou o relógio. Presente do pai. Olhou para a imagem cristã na parede do quarto. Não tinha o hábito de rezar. Orações nunca o confortaram, mas pensou um instante. Quem sabe…
Em vez disso, tomou novamente o caminho de volta, o corredor parecendo sempre e, cada vez mais, maior do que o era. Controlou a lágrima espessa, respirou fundo. Ao longe, mais à frente, pareceu ver uma luz. Naquele exato instante, soube. Nunca mais o pai empostando a voz…’in the early morning rain…an in aching in my heart, and a pocket full of sand…’.
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