FERIDAS EXPOSTAS
Cumplicidade e quebra na estrutura familiar padrão, onde filhos aprendem e pais ensinam, são um dos pontos fortes deste longa
Por Raphaella Spencer
ESTAMOS BEM MESMO SEM VOCÊ
Kim Rossi Stuart
[Anche libero va bene, ITA 2006]
Um dos grandes méritos de um cinema autêntico não é falar sobre um tema inédito, mas sim o talento de ir aonde ninguém foi, ao falar sobre assuntos recorrentes na vida de todos, como por exemplo, as relações familiares. Quantas vezes não passamos por crises nesse núcleo? Quem ao olhar para o passado não lembra de momentos cruciais vividos em família, em que quase automaticamente nos sentíamos crescer. E é desse amadurecimento do menino-protagonista Tommi Benetti, o ator mirim Alessandro Morace, que empresta ao seu personagem um olhar profundo e revelador, o qual muitas vezes vai antecipar as aflições e angustias colocadas em seguida em suas palavras durante o filme, que segue em exibição pelo Brasil, com distribuição caótica.
Premiado em Cannes em 2006 pela Confederação Internacional dos Cinemas de Arte e Ensaio, Estamos Bem Mesmo Sem Você (Anche libero va bene) é o filme de estréia do ator italiano Kim Rossi Stuart. No filme ele interpreta Renato Benetti, pai de Tommi e Viola (Marta Nobili), e com seu jeito atripulado, mantém um núcleo familiar bem estruturado, que nos trinta minutos iniciais se apresenta dentro da maior “normalidade”, conduzido com pulso firme por um pai solteiro.
Mas esse clima ameno do filme, que no início é envolvente justamente por sua leveza, pois nos torna cúmplices da engrenagem perfeita formada por essa tríade, é abalada pelo retorno de Stefania Benetti, a mãe e esposa, que como mulher não se adequa a esses papéis. Refinada e acostumada com as altas rodas da sociedade, ela sofre com a ausência dos filhos, mas o tempo todo desde o seu retorno vemos uma mulher deslocada daquele espaço e a rotina imposta por ele. A noite do retorno é conflituosa. Renato expõe seus filhos a uma situação constrangedora confrantando-os com sua crise conjugal, colocando-os no meio da discussão sobre traição repleta de insultos e ataques a mãe dos meninos.
Esse mesmo comportamento se repete outras vezes. Durão, o pai sempre cobra de seus filhos uma atitude madura, sem poupá-los de nada que acontece nos problemas de sua vida adulta: crise financeira, desapontamentos, tudo é discutido diretamente com as crianças, em cenas que nos colocam numa posição marovilhosamente desconfortável. É o contrario do que nos foi ensinado sobre “a conversa de adulto”.
Sim, eles são só crianças, mas essa complicidade com pais frágeis e que precisam de ajuda como todo ser humano, transforma os dois jovens desse filme em alicerces de sua própria família. Essa cumplicidade e quebra na estrutura familiar padrão, onde filhos aprendem e pais ensinam, são um dos pontos fortes do filme. Muitas vezes, a ponderação sugerida pelo olhar de Tommi é mais madura que as explosões histéricas de seu pai ou que os tremores e excessos de carinho de sua mãe.
O filme não tira de Tommi o mais belo de sua infantilidade, quando somente ele e nós expectadores estamos juntos no telhado do prédio de estilingue em punho. Ali Tommi se refugia de seus problemas e vivemos momentos tensos: muitas vezes ele se arrisca chegando bem perto da beirada, para nos lembrar que ele é só uma criança sem ponderação diante de uma traquinagem. Angustia saber que aquela criança que enche o filme de lições e encara tudo com muita seriedade, pode ser tão “infantil” ao ponto de se arriscar daquele jeito.
Estamos Bem Mesmo Sem Você é um filme com um protagonista mirim, aposta de muitos outros, inclusive um muito parecido em sua premissa, O Ano Em Que Meus Pais Saíram De Ferias de Cao Guimarães, que também nos torna cúmplice de um jovenzinho forçado a amadurecer diante das adversidades e da ausência de seus pais. A diferença entre ambos é que no italiano, as situações triviais que apresentam cada um de seus personagens, seja a aula de natação, a sala de aula, os tempos mortos batendo bola no pátio, todas essas situações nos tornam íntimos daquele personagem, ao ponto de seu crescimento nos momentos de conflito poderem ser sentidos por quem está do lado de cá.
NOTA: 8,5