FICA O MITO
Cores & Valores, primeiro disco do grupo em 12 anos, escancara o ocaso dos Racionais MC’s
Por Maurício Ângelo
Da Movin’Up
O que outrora foram “os quatro pretos mais perigosos do Brasil” hoje soam como quatro caras cansados de meia idade, esgotados e sem capacidade de apresentar ideias não necessariamente novas, mas relevantes. É isso que “Cores & Valores”, o primeiro disco de estúdio em 12 anos do Racionais MC’s revela.
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De cara, o álbum carrega o peso de suceder Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, um monumento do rap nacional e mundial, disco duplo que sucedeu o igualmente estrondoso Sobrevivendo no Inferno e cravou definitivamente o Racionais como nome único da cultura popular brasileira, gerando um testamento que encontra pouquíssimos paralelos entre seus pares.
O outro peso é o tempo. Muitíssima coisa acontece em 12 anos, entre o próprio grupo em todas as esferas da vida, na música, na política e na sociedade como um todo. Aceito, reticente, a tese de que o Racionais foi, também, uma resposta à era-FHC nos anos 90, alardeada por aí há algum tempo. Ignorando que a discografia remonta ao final dos anos 80, início dos 90, a tese é tão válida quanto frágil e o tempo da banda longe dos estúdios casa com o período de início do governo do PT na presidência, partido com o qual, direta ou indiretamente, o Racionais tem lá seus vínculos e seu alinhamento.
E se o país avançou profundamente em várias áreas nestes 12 anos, eliminando a pobreza extrema, reduzindo a desigualdade social, melhorando o poder de compra da população, aumentando a classe média e oferecendo oportunidades de estudos da creche ao ensino superior para quem tinha pouco ou nenhum acesso antes, o Brasil obviamente navega em problemas estruturais profundos que seriam um banquete para o “velho” Racionais.
Ainda estamos entre os 10 países mais desiguais do mundo – os dez, perceba a gravidade – a polícia paulista continua matando inocentes a torto e a direito – foram 10 mil mortos nos últimos 19 anos – o PSDB acaba de renovar o governo do estado, completando mais de 20 anos no poder do estado de São Paulo, os parlamentares eleitos em SP refletem um dos quadros mais retrógrados da história (vide Coronel Telhada, Marco Feliciano, Eduardo Bolsonaro, etc), a morte ostensiva de jovens negros permanece absurda e crescente, o sistema prisional brasileiro registra um dos maiores índices de presos provisórios do planeta e por aí afora.
Independente dos avanços e de quem esteja na presidência, o Racionais MC’s não tem mais o que falar? Resta requentar velhos temas e clichês da maneira mais óbvia possível? Resta abordar, novamente, a dicotomia ostentação/periferia, ascensão/preconceito, tão potencializada pelo próprio funk ostentação paulista dos últimos 5 anos? “Eu Compro” é sintomática nisso. Diz a letra:
“Olha só aquele shopping, que da hora! / com os moleques na frente pedindo esmola / pé no chão, malvestido, sem comer / será que alguns que estão ali irão vencer? / minha ambição tá pista, pode pá que eu encosto (…) E seu sonho de ter a Fireblade vermelha Repsol Cbr / Uma Vmax, um apê, R8 Gt / Ou uma Porsche Carrera, pôr no pulso um Zenith / Ou um Patek Philippe / Pingente de ouro com diamante e safira / No pescoço um cordão, os bico vê e não acredita / Que o neguinho sem pai que insiste pode até chegar / Entra na loja, ver uma nave zera e dizer / “Eu quero, eu compro e sem desconto! ” / À vista, mesmo podendo pagar / Tenha certeza que vão desconfiar / Pois o racismo é disfarçado há muito séculos / Não aceita o seu status e sua cor”.
Se as letras são fracas – e os exemplos são inúmeros, de “Preto Zica” a “Você Me Deve” – musicalmente o Racionais também nunca esteve tão óbvio, repetitivo e autorreferente. Para um grupo conhecido por suas verdadeiras narrativas em músicas com mais de 7, 8, até 10 minutos, torcendo e retorcendo beats em cima das bases e rimas de Mano Brown, Edi Rock, Kl Jay e Ice Blue, usando samplers inteligentes de gente como Marvin Gaye, Al Green, Isaac Hayes, War e Curtis Mayfield – ou seja, parte da nata da música negra mundial e também Cassiano e Almir Guineto, no Brasil – “Cores & Valores” apresenta músicas de duração curtíssima, a maioria com dois minutos ou menos.
Essa urgência poderia significar uma sonoridade mais agressiva e direta, dialogando por exemplo com um Death Grips lá fora, o nome mais óbvio do hip-hop alternativo de alta octanagem nos últimos anos ou ainda um Flying Lotus e sua capacidade de condensar jazz, experimental, eletrônico, Minneapolis Sound e hip-hop em músicas com um minuto e meio, mas não, o Racionais não tem nada a ver com essa trupe.
A baixíssima duração da maioria das músicas do disco revela, isto sim, ideias mal acabadas, incompletas, desleixadas, fragmentos e pedaços indignos de um grupo com a história que eles possuem e que teve 12 anos pra preparar um álbum. As cinco – cinco! – primeiras músicas de Cores & Valores somadas, tem menos de 4 minutos. E parecem vinhetas, mesmo as que não são. “Preto Zica” e “Finado Neguin”, na sequencia, também não ajudam muito. “Eu Compro”, já citada, “A Escolha Que Eu Fiz” e “A Praça”, tendo como mote a confusão gerada no show do grupo na Praça da Sé em São Paulo com trechos de reportagens diversas, inteiram 10 faixas com a sensação de que o álbum não começou de verdade. Pecam na composição, na execução, na escolha e encadeamento do repertório. Não quebram o paradigma que criaram, mas alimentam um arremedo do que já fizeram, um pastiche vergonhoso do melhor Racionais.
A coisa só começa a funcionar mesmo “no último ato”, com a pegada charme-seresteira-pagode 90 de “O Mau e o Bem” que, apesar de sua melodia e linha extremamente comum e chupinhada de uma série de canções que temos na memória, é ótima música, nostálgica, pegajosa, com potencial radiofônico e diferente do habitual do grupo. “Você Me Deve”, “Quanto Vale O Show” (com sampler de “Gonna Fly Now”) e “Eu te Proponho” salvam a honra do álbum, ainda que em abordagens ora preguiçosas, ora insistindo em efeitos exagerados nas vozes (“Coração Barrabaz” é uma bobagem) e beats comuns.
Em suma, Cores & Valores tem tudo para agravar a dicotomia entre o público histórico do Racionais, da periferia e classe média com a playboyzada hipster que tanto consome o “novo rap jovem urbano moderno paulista”. E não deixa de ser absurdo que se permitam serem engolidos por Emicidas, Criolos, Rashids, Projotas e tantos outros que compõe a tal trupe, que podem (sim) comungar do mesmo balaio. Sai o grupo como um todo, entra o espaço para que cada um se dedique a seus projetos solo.
Como EP, cortando várias faixas desnecessárias, talvez Cores & Valores fosse um lançamento aceitável. No contexto em que se insere, representa a opção do Racionais – talvez definitiva – de abrir mão em ocupar o protagonismo da atualidade, que abandonaram há algum tempo, para se contentarem em viver do mito e do que construíram.
RACIONAIS MC’S
Cores e Valores
[Cosa Nostra, 2014]
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* Maurício Ângelo é jornalista e edita a revista Movin’Up. Assina também o blog Crimideia e o tumblr Lobo da Estepe.