SUBINDO O RIO
Uma viagem por comunidades afastadas na Amazônia, entre Brasil e Bolívia durante o FestcineAmazonia
Por Ismael Machado
Na fronteira Brasil-Bolívia
Fotos de Hubert Hayaud
“Estou esperando o calor tropical que ainda não veio”. Em tom de brincadeira o escritor português José Luís Peixoto reclamava da baixa temperatura de frios cortantes na cidade boliviana de Guayaramerin. Com menos de 15 graus centígrados, a friagem pegou toda a equipe do Festcine Amazonia de surpresa. O receio que poucas pessoas arriscassem sair de casa para assistir à programação era real, mas mostrou-se infundado. A Praça do Cavalo, no centro da cidade, lotou. Era apenas a segunda noite da itinerância.
Música, poesia, arte circense e cinema. Nessa ordem. Assim foi a programação da etapa Amazônia 2013 do Festival de Artes Integradas – Festcine Amazônia Itinerante. Música, circo, cinema e literatura integraram o cardápio cultural da programação. A ideia, no papel, parece simples. Levar, em alguns casos, a comunidades afastadas, um tipo de atividade cultural distante do universo cotidiano de cada uma delas. Na prática, subir o Vale do Guaporé, rio que banha e separa comunidades bolivianas e brasileiras, é uma tarefa complicada. Desde o enfrentamento a mosquitos, como superar as dificuldades de navegar por um rio em período de baixa maré com pedras e bancos de areia desafiando habilidades dos pilotos. Não é tarefa fácil.
Enfrentar mosquitos, superar dificuldades de navegar por um rio na baixa maré com pedras e bancos de areia desafiando habilidades dos pilotos. Não é tarefa fácil.
A itinerância do Festcine Amazonia existe desde 2008. É a extensão cada vez maior de um braço do festival de mesmo nome, que vai completar onze anos de existência em Porto Velho, capital de Rondônia. Começou com a ida a países como Peru e Bolívia. Nos primeiros anos, apenas apresentações de filmes. Aos poucos, o leque foi sendo ampliado. Outros lugares foram incorporados e mais possibilidades artísticas surgiram. África e Portugal passaram a ser destinos certos. E todas as capitais amazônicas também. Uma coisa levou a outra. Este ano teve patrocínio do BNDES, Ministério da Cultura, Secretaria do Audiovisual, apoio cultural da Santo Antônio Energia e Parceria Institucional da Fundação Banco do Brasil.
Agora fazendo parte do circuito de Artes Integradas, o Festcineamazônia Itinerante amplia ainda mais o leque de locais a serem alcançados. No total, em 2013 percorrerá cinco países e contemplará mais de 20 cidades com cinema, circo, literatura e música, mantendo o foco inicial de sempre estar em comunidades com dificuldade de acessos formas diferentes de arte. “Nesses locais a presença do Festcineamazonia Itinerante sempre é aguardada, onde a arte circense e do cinema, são sempre novidades”, diz Jurandir Costa, um dos organizadores do Festcineamazônia. Os países que receberão o festival itinerante são Bolívia, Peru, Portugal e Cabo Verde na África, além de cidades amazônicas.
Início por terra
A etapa do Vale do Guaporé teve início no dia 08 de agosto. No plano inicial, a presença em 13 comunidades. Oito brasileiras e cinco bolivianas. No dia 07, a equipe saiu de Porto Velho em direção ao município de Guajará-Mirim, fronteira brasileira com a Bolívia. Foi o único local onde a chegada se deu por via terrestre. Com uma população de mais de 40 mil habitantes e um dos municípios de maior atrativo turístico e histórico de Rondônia, Guajará-Mirim deu a partida para a itinerância.
O que chamava a atenção era a possibilidade multicultural que seria proporcionada ao longo dos dias. Estavam no mesmo espaço o músico rondoniense Bado, o artista de circo argentino Martin Martinez, o poeta português José Luís Peixoto e a seleção de curtas do Festcineamazonia, que engloba várias regiões brasileiras.
A ideia de unir artistas de diferentes vertentes tem sido uma das principais novidades dos últimos eventos produzidos pelo Festcineamazonia. Ao celebrar a diversidade cultural, une pontos que poderiam ser considerados não convergentes ou de realidades opostas.
É o caso do escritor português José Luís Peixoto. O texto intimista do poeta foi levado a comunidades ribeirinhas a partir não só de ‘contação’ de histórias a crianças nas escolas, mas também com a distribuição de um pequeno livro produzido especialmente para essa edição itinerante. Ao conhecer a proposta do Festcineamazonia, Peixoto fez questão de ver de perto a realidade dos rios e estradas amazônicos que se descortinam a cada itinerância.
Subindo o rio, um forte português
No sábado, 10, a caravana cultural atravessou o rio e foi até a cidade boliviana de Guayaramerin. A Praça do Cavalo foi o local escolhido para a apresentação cultural. A partir daí, o Vale do Guaporé foi o destino.
Depois de mais de um dia subindo o rio, a primeira parada. O distrito rondoniense de Surpresa, uma pequena comunidade vizinha a aldeias indígenas, como a de Sagarana, dos índios Uruari. Nessa noite, espantados os mosquitos com a borrifação de um ‘fumacê’, produto usado para espantar insetos, a expectativa era para a exibição do filme O Homem que Matou Deus, uma produção de um francês chamado Noé, que utilizou praticamente toda a equipe técnica e de atores das comunidades indígenas e de Surpresa. “Foi uma boa experiência, mas ainda precisamos de mais apoio para filmar”, disse o índio Celso Suruéu, assistente de direção do curta, selecionado para a Mostra Internacional de São Paulo.
O ponto seguinte foi o Forte Príncipe da Beira, dois dias depois. Construído pelos portugueses em 1777, o forte pertencia ao que hoje é o estado de Mato Grosso. Com 910 metros quadrados e 53 canhões, é considerada a maior obra de arquitetura militar portuguesa. Foi erguida por Dom Albuquerque de Melo e Cáceres a pedido do Marquês de Pombal. Tombada em 1950 como patrimônio histórico brasileiro, o forte ainda atrai turistas de várias partes do mundo.
Pelo menos cem das 500 pessoas moradoras do distrito assistiram à programação. A similaridade histórica foi lembrada pelo escritor português José Luís Peixoto. “Portugal ergueu esse forte e eu vim de lá para encontrar vocês”, lembrou.
Rondônia, Bolívia e uma hélice arrebentada
Buena Vista fica na Bolívia. Costa Marques em Rondônia. Mas o que as separa é apenas o rio. Uma fica em frente a outra, a apenas cinco minutos de travessia de barcos, que encerram expediente pontualmente às 18h30. Buena Vista é um curioso aglomerado de casas de madeira que servem basicamente a um único propósito, o comércio de bugigangas eletrônicas e outros produtos. À frente de uma praia, estabelece uma simbiose automática com o município de Costa Marques.
Em Costa Marques, a equipe do FestCineAmazonia teve uma das principais surpresas de toda a itinerância. Um trio de cantores e músicos mirins, os Irmãos Vulcão pediu para se apresentar durante o evento. Com média de nove anos de idade, os irmãos, duas meninas e um garoto, executam músicas folclóricas, guarânias e cancioneiros caipiras.
Duas comunidades quilombolas marcaram os próximos trechos rondonienses da jornada. Santo Antonio e Pedras Negras têm na extração de castanha um dos pontos fortes da economia local. E ambas tem uma forte presença de moradores jovens. Santo Antonio possui apenas 13 casas, de madeira e cobertas por palhas. A produção de farinha também é forte. A apresentação à noite foi feita próxima a uma frondosa mangueira e teve, inclusive, a participação de um morador, que escreveu uma poesia especialmente para a ocasião.
Do lado boliviano, Versalles e Mateguá foram as duas próximas comunidades. Mateguá tem como característica principal o fato de ser uma comunidade praticamente dividida entre os que professam uma religião chamada por eles de Israelita, onde os homens usam longas barbas e cabelos e as mulheres vestem-se com longas batas e cobrem os cabelos como freiras e os que não seguem essa religião. Durante muito tempo os dois grupos praticamente não se entrosavam, embora convivessem num espaço minúsculo. O Festcine fez com que sentassem lado a lado. Riram com o palhaço Martinez, balbuciaram as canções desconhecidas de Bado, emocionaram-se com o poeta Luís Peixoto e assistiram com atenção aos filmes exibidos.
Remanso foi a última comunidade boliviana da itinerância. Como um sinal, foi onde o público superou expectativas, sendo necessário acrescentar mais cadeiras para satisfazer a demanda de plateia. Como em outras comunidades o cantor Bado apresentou “Ciranda de quintal”, uma composição feita durante a itinerância e lapidada aos poucos nos intervalos de apresentações durante o período de navegação.
Já Porto Rolim e Pimenteiras d’Oeste encerraram a etapa rondoniense. A proximidade com Pimenteiras reservaria as surpresas embutidas em uma viagem pelos rios amazônicos. Encalhes, quebras de leme e choque com uma pedra que arrebentou a hélice da embarcação foram alguns dos problemas enfrentados pela equipe. As apresentações encerraram dia 25 de agosto. Menos de dez dias depois, a equipe do FestCineAmazonia já encarava novo desafio, as estradas peruanas. Mas isso é outra história.
_
* Ismael Machado é jornalista e autor do livro Sujando os Sapatos- O Caminho Diário da Reportagem (IAP). Venceu o prêmio Vladmir Herzog pela série “O Dossiê Curió”, sobre Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, um dos nomes mais relacionados à Guerrilha do Araguaia.
Veja mais fotos do festival