O Grito! – O que você acha do uso da IA no cinema?
Ernesto – Primeiro queria dizer que não usei produtos de IA para redigir ou revisar estas respostas às suas perguntas.
Penso que pra falar sobre o uso disso que agora estamos sendo convocados a chamar de “inteligência artificial” no cinema é importante entender bem a que estamos nos referindo quando usamos essa expressão “IA”.
Por um lado, é importante diferenciar o que considero duas naturezas distintas de usos de IA no cinema, que não são completamente desconectadas uma da outra – que estão em continuidade – mas cuja diferença é prática e ao mesmo tempo filosófica e política. Existem usos destas tecnologias atuais que dizem respeito a incidir sobre sons e imagens já captados (por câmeras e gravadores), e processá-las de formas específicas, como limpar sons, interpolar quadros, identificar zonas da uma imagem ou de um som a serem interferidas com o uso de alguma ferramenta específica de pós-produção (como delimitar a forma de uma máscara para correção de cor, ou uma faixa de frequências para a aplicação de um compressor de som).
Esses processamentos usam tecnologias, como redes neurais, e machine learning, que são parte do conjunto mais amplo de procedimentos que agora chamamos de IA. Ao mesmo tempo existem usos desta tecnologia que aparentemente visam a criação de sons e imagens que não foram captados, como uma espécie de substituição do ato de captura e montagem cinematográficas por uma adesão a produtos corporativos de um pequeno grupo de empresas, que são o que mais comumente temos chamado de “inteligência artificial”, e que funcionam com base em modelos de grande escala, recorrendo a bancos de dados cuja consolidação não é abertamente discutida ou apresentada, o qual acessamos por meio de “prompts” (solicitações escritas). O ponto de contato dessas duas naturezas reside no fato de que muitas vezes quando vamos processar sons e imagens usando IA estamos na verdade gerando novas informações não captadas, e creio que existem zonas intermediárias confusas. Mas em linhas gerais a distinção prática é sensível e nós sabemos quando estamos operando em uma chave (da lapidação sobre sons e imagens que nós fizemos) ou na outra (na delegação a esses sistemas, usando prompts etc).
O problema central é que usando essas tecnologias para um fim, você está colaborando (mesmo que não muitas vezes não consinta) na construção do outro.
Isso porque o que está acontecendo neste momento é que um pequeno conjunto de corporações, as mesmas que têm sitiado as nossas formas de sentir, produzir, de consumir, de nos vincular, de nos comunicar… e que têm sitiado os nossos arquivos, as nossas memórias, e sequestrado as nossas atenções, agora encontraram uma maneira mais eficaz ainda de fazê-lo. A tecnologia da “inteligência artificial”, apesar de ser uma ruptura e um acontecimento profundamente relevante e distinto de muito do que vivemos até aqui como espécie, é por outro lado tão somente a nova etapa desse estado de sítio sobre as nossas atenções. É a decorrência dos nossos dados e formas de expressões terem sido minadas intensamente e sem escrúpulos durante um pouco mais de uma década, com o nosso sequestro anterior pelas redes sociais e pela internet 2.0.
E a grande maioria dos produtos de “inteligência artificial” com os quais temos lidado estão neste momento sendo lançados como armas por esse pequeno conjunto de corporações norte-americanas que já vinha nos assediando: Microsoft, Meta (Facebook, Instagram), Twitter (X), Google… Neste momento essas empresas estão praticamente forçando goela abaixo da população essa nova rede de produtos com o único objetivo de prender-nos a eles e adquirir primazia de mercado. É quase triste a maneira como as pessoas agem como se estivessem sendo brindadas com algo muito especial e útil de forma gratuita ou muito barata. Sim, Instagram e YouTube no começo eram gratuitos, mas veja o que isso nos custou. Veja o quanto da sua atenção e do seu tempo cotidiano ainda te pertence, e o quanto dele você passa na verdade assistindo propagandas hipnotizado.
Nesse contexto acho perigosamente ingênuo, por exemplo, o uso da expressão “ferramenta” para se referir a esses produtos. A ideia de que é “uma ferramenta como qualquer outra” e de que “basta saber usá-la direito”, ou de que “as vezes não fica bom, mas para algumas coisas serve”, como se o problema fosse a imperfeição dos olhos ou das mãos que ainda verificamos nos vídeos feitos por IA, são todas ideias que realmente deixam de perceber a real dinâmica em jogo, a real transformação em curso. “Inteligência artificial” é uma forma de consolidar uma base de consumidores-assinantes.
Usá-la é deixar-se enredar por esse processo, subscrever, alimentar e autorizar as corporações que mobilizam esses sistemas e os colocam na sua frente da maneira mais insistente que se pode imaginar (o agora Google te obriga a ver resultados gerados por IA, e o Whatsapp atualmente não possui um, mas sim DOIS botões para “conversar” com a Meta-IA, que ficam na sua frente o tempo todo quando vc abre o aplicativo). Eles estão desesperados pela sua interação, e pelas suas perguntas, precisam dos seus dados, e da sua dependência, do seu uso cativo.
Assim, o uso do IA no cinema é apenas um caso específico desse projeto corporativo em curso, e ao meu ver tem que ser encarado levando em consideração tudo isso. Eu diria então que acho o uso do IA no cinema um problema, do mesmo jeito que isso tudo é um problema. Mas há nuances, e acho importante fazer uma distinção. Os produtos de “inteligência artificial” (as chamadas “ferramentas”), são programados usando processos que existiam antes do ChatGPT se disseminar. Redes neurais e machine learning, duas peças chaves para a emergência da IA atual, são processos computacionais que já vinham sendo usados não só por essas grandes corporações, mas por outras um pouco menores, cujo uso permeia o trabalho técnico no cinema.
Assim, por exemplo, a aplicação de uma câmera lenta de pós-produção (não captada em câmera), ou transformação de frequências de quadro por segundos, há muitos anos faz uso de uma tecnologia chamada “optical flow”, cujo procedimento agora está fundido com os processos chamados de “inteligência artificial”, porque trabalham com machine learning e com ciclos iterativos.
Por último, acho que não é uma ferramenta como qualquer outra também porque é muito mais potente, destrutiva e transformadora do que qualquer outra invenção corporativa que tem atravessado nossas vidas na modernidade. Muita gente compara IA com invenção da internet ou da eletricidade… Geralmente essas comparações são feitas para desenhar um antes e um depois inevitável. Bem, eu acho que IA é comparável com todos esses eventos e, ao mesmo tempo, com nenhum deles.
Você acha que o uso da Ia vai afetar – tanto em termos artísticos quanto financeiros a produção independente e filmes de baixo orçamento (como é o caso de Pernambuco) ou só as grandes produções?
Acho que vai afetar e que já afetou. Acho que por um lado, o uso indiscriminado de IA na elaboração de projetos, no início da cadeia produtiva do cinema, vai gerar o mesmo tipo de empobrecimento e caráter derivativo que temos visto. Acho que, por outro lado, isso vai gerar uma resposta, uma reação, e também veremos histórias mais livres, menos presas a conceitos muito básicos de conflito setc, à medida em que as pessoas fujam do cenário criado pela IA.
Então o efeito vai se dar na forma de pensar e de inventar. E também em como nossas obras circulam num contexto no qual as pessoas estão mais reguladas ainda a vibrar na frequência dos conteúdos curados por algorítmos programados por IAs nas grandes plataformas.
Acho que financeiramente o cinema independente estará acontecendo num contexto no qual essas corporações vão afirmar ainda mais seu domínio sobre nossas sensibilidades e, por outro lado, isso também vai gerar respostas, economias de pequena escala. Porque, ao mesmo tempo, fazer cinema está cada vez mais barato.
Acho que as atividades de assistência de edição estão ameaçadas, porque dizem respeito à sistematização de um volume grande de dados, e esse é o tipo de trabalho que essas tecnologias se propõem a fazer melhor do que os humanos.
Ernesto de Carvalho
Você usou IA em seus filmes mais recentes, se sim, como? Se não, pretende usá-la nos seus próximos trabalhos?
Nos meus últimos trabalhos – tanto como diretor, quanto como diretor de fotografia, ou montador, usei apenas aquelas ferramentas dos programas de pós-produção que dizem respeito a processar sons e imagens já feitos, já captados, e mesmo assim de forma muito criteriosa, e sempre com muita hesitação. Busco sempre saber qual é a natureza de cada ferramenta que vou usar, e se uma ferramenta recorre a qualquer procedimento de machine learning, large language model ou rede neural, minha resistência ao uso é enorme. O que cheguei a fazer foi, especificamente, limpeza de um som muito estragado durante a mixagem de um filme, e aumento de resolução ou frequência temporal de imagem.
Essas ferramentas já existiam antes do ChatGPT, Sora, Midjourney etc, usando as tecnologias de machine learning e redes neurais, e apenas seguiram seu desenvolvimento neste contexto atual pós disseminação de IA. No caso usei essas ferramentas dentro do programa de finalização de imagem Blackmagic Davinci Resove, e dentro do programa de finalização de som ProTools.
Eu não pretendo usar nenhum produto de inteligência artificial para gerar imagens ou sons que não tenha captado, a não ser que chegue a fazer um filme especificamente sobre esse assunto. Num filme recente no qual trabalhei houve uma tentativa por parte de pessoas chave da produção de usar IA para atualizar fotos antigas. Eu achava o resultado horrível, mas, pior ainda, achava problemático filosoficamente. Fiquei contente quando depois de muitos testes os colegas responsáveis por essas escolhas retrocederam e perceberam que era muito mais interessante deixar as imagens como estavam e usar técnicas tradicionais de tratamentos das imagens. Eu acho que este momento para muita gente é também de realizar esse tipo de experimentações para poder separar o que é uma espécie de ufanismo que têm tratado IA como panaceia, das limitações desses produtos, e do caráter problemático do seu uso.
Em sumo: pretendo usar IA cada vez MENOS nos meus trabalhos.
Já vi pessoas afirmando que, no futuro, a IA será tão corriqueira que filmes feitos sem usá-la seria um objeto cult como é hoje um álbum musical em disco de vinil em relação a um álbum lançado numa plataforma de streaming. Você concorda?
Acho que há alguns anos estamos vivendo um renascimento do cinema em celulóide, em película. Acredito que o mais possível é que o uso indiscriminado de inteligência artificial vá produzir um desejo do analógico, um lastro com o real, frente ao excesso de coisa sintética. Acho que as corporações empurrando produtos de inteligência artificial querem que nós pensemos que no futuro “quem não usar vai ficar defasado ou para trás, ou será um tolo nostálgico”. O sentimento apocalíptico e de coisa inevitável que muita gente tem é algo minuciosamente alimentado por essas corporações, que querem que pensemos que não há futuro fora dos planos construídos por elas para gerar valor em cima de nossas vidas.
Já existem editores de vídeo por IA. Você acha que atividade de editor está ameaçada?
Acho que as atividades de assistência de edição estão ameaçadas, porque dizem respeito à sistematização de um volume grande de dados, e esse é o tipo de trabalho que essas tecnologias se propõem a fazer melhor do que os humanos. E acho que editores para vídeos de internet vão ter seu espaço de trabalho em parte tomado pelo uso desses produtos. Mas acho que os editores de cinema, especificamente, nunca deixarão de ser peças chaves da construção de um filme. A ameaça para os editores será apenas um mundo de pessoas com as sensibilidades cada vez menos disponíveis e mais moldadas por procedimentos estéticos e narrativos de curtíssima duração, cada vez mais pobres do ponto de vista de articulação de som e imagem, e da relação com a vida real das pessoas. Mas isso não é, nem será novidade, e a humanidade sempre foi se salvando disso.
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Ernesto de Carvalho é antropólogo, fotógrafo, cineasta e montador.

