Ruy Castro (Foto: Divulgação)
TRAVESSURAS SOB AS VESTES DA REALEZA
Ruy Castro conseguiu trazer vivacidade e inovação num tema esgotado: a aventura da chegada da Corte de Portugal ao Brasil
Por Rafael Dias
A efeméride dos 200 anos da chegada da Corte Portuguesa ao Brasil Colônia em março de 1808, ao Rio de Janeiro, rendeu um conjunto de homenagens, eventos, selos, livros, ensaios, teses, desfiles de escola de samba e toda sorte de lançamentos no fim do ano passado e começo deste. Mas, em meio a essa enxurrada de comemorações, uma se destaca pela criatividade e pelo afiado estilo literário. Era no Tempo do Rei, novo livro de Ruy Castro, combina realidade histórica com ficção com bom humor e narrativa leve, sem perder a perspectiva política e social da época. Hábil biógrafo, o jornalista fisga o leitor com uma linguagem atraente e saborosa, aos moldes do estilo romântico do Século 19. Difícil não se deixar conduzir pela história.
O mérito de Ruy Castro está em recontar um fato histórico, um dos mais importantes do recente passado brasileiro, sem a pretensão de trazer à tona algo inédito, alguma fofoca dos bastidores. Tudo que ele diz está lá, registrado na historiografia nacional: os desvarios da rainha Carlota Joaquina, o jeito inseguro e um tanto subserviente de D. João VI, as ruas podres e fétidas do Rio de Janeiro antes da urbanização, os severos estratos sociais (escravos, colonos, portugueses) etc. Isso todos já sabem, ou pelo menos deveriam saber. Mesmo exaustivamente explorado, o tema ganha vivacidade pelas mãos do escritor, que embute histórias fictícias e floreios, e ao mesmo tempo, não deixa de ser fidedigno ao contexto a que se propõe recompor.
Para não se perder em suas próprias elucubrações, o autor usa como artifício elaborar um pastiche engenhoso com base em uma obra-prima do romantismo brasileiro, o livro Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Não apenas transpõe o ambiente e os cenários descritos no livro oitocentista, como dá sobrevida (!) ao personagem-título da obra, o garoto Leonardo, abandonado pela mãe e ignorado pelo pai. Em um encontro só possível na literatura, Castro reúne o personagem inventado com um bastante real, D. Pedro, filho de D. João VI, ainda um garoto serelepe e de calças curtas. Num tacanho Rio de Janeiro de 1810, Leonardo e D. Pedro, na flor dos 12 anos de idade e de temperamento endiabrado, tornam-se amigos inseparáveis de aventuras e travessuras, tropicalizam-se e aprontam de tudo o mais sob os narizes insuspeitos da realeza.
Com estilo satírico e muita picardia, Ruy Castro transmite a malemolência e o “jeitinho brasileiro”, ou o protótipo do que isso viria se tornar hoje em dia, do quadro em que pincela a sociedade de então. Padres, prostitutas, comerciantes, farsários, nobres, todos usam de seus subterfúgios para extrair a riqueza que podem da Coroa. Nesse sentido, Castro só corrobora a imagem que se tem dos primeiros habitantes que aqui no Brasil chegaram: em suma, degredados, piratas e oportunistas, sem um traço sequer de moralidade e ética, cada um querendo seu quinhão. Seria, por coincidência, a mesma faceta podre que se apodera ainda das entranhas do comportamento brasileiro e que teimamos em escamotear?
Não há em Era no Tempo do Rei, no entanto, qualquer tom de questionamento político, pelo menos explícito. Trata-se mais de um livro com uma história leve, divertida. Também não traz nada de novo, vide o filme Carlota Joaquina, de Carla Camuratti: a sátira é igual. O brasileiro adora rir de si mesmo, e a obra se apropria disso muito bem. Mas é inegável que a crítica social e histórica subsiste em seus meandros. Nele, podemos encontrar pistas e atalhos para entender melhor (e nunca é demais) o contexto da panacéia que vivemos hoje.
ERA NO TEMPO DO REI – UM ROMANCE DA CHEGADA DA CORTE
Ruy Castro
[Objetiva/Alfaguara, 248 págs, R$ 35]