Stela Campos (Foto: Júlio Bittencourt/ Divulgação)
ÍCONE INDIE REDESCOBERTO
Por Gabriel Gurman
Não. Se você não conhece o trabalho de Stela Campos, não a imagine como mais uma destas cantoras brasileiras da nova onda da MPB. Aliás, paradoxalmente a este eventual prejulgamento, não há melhor adjetivo para acompanhá-la, senão roqueira. “Eu gosto de barulho!”, deixa claro esta paulistana que acaba de tirar do forno seu último álbum, Mustang Bar. Na verdade, seria injusto chamá-la apenas de roqueira. A incorporação de diversos elementos, influências e inspirações de seu som representam perfeitamente a trajetória de Stela. Além de sua carreira solo, a artista já participou das bandas Lara Hanouska, Funziona Sensa Vapore, além de ter morado seis anos no Recife, onde teve a oportunidade de presenciar (e interagir) com o surgimento do movimento manguebeat. Confira abaixo a entrevista que a Revista O Grito! realizou com Stela.
BOM, PARA COMEÇAR, CONTE UM POUCO SOBRE SUA CARREIRA, PARA AQUELES QUE NÃO A CONHECEM…
Sou paulista, compositora, toco teclado, guitarra e violão, o suficiente para criar músicas e fazer os seus arranjos. Minha primeira banda de rock foi o Lara Hanouska, nos anos 90. Comecei a carreira solo em 1999 com o disco Céu de Brigadeiro, depois vieram Fim de Semana e Hotel Continental. Agora estou lançando o Mustang Bar. Morei seis anos em Recife, no início do movimento manguebeat e acabei tocando com muita gente da cidade, como o Chico Science, Devotos, Eddie etc. Além disso, participei também de uma banda chamada Funziona Sensa Vapore, com os ex-integrantes de uma banda paulista chamda Fellini (grupo bem cult dos anos 80), onde gravei um disco com também, do qual Chico Science e Nação Zumbi gravaram a música “Criança de Domingo”, que está no Afrociberdelia. Na verdade, fui eu que fiz essa ponte entre o Chico e o que havia do Funziona na época, que, no caso, era apenas uma fita cassete que rodava de mão em mão em Recife. Chico e o pessoal da Nação eram fãs do Fellini e, quando fui para Recife, em 1994, chegamos a fazer um show juntos tocando só as músicas do Fellini e do Funziona.
QUERIA QUE VOCÊ CONTASSE UM POUCO SOBRE A IMPORTÂNCIA DO CHICO, DA CENA RECIFENSE, ENFIM, DA PRESENÇA DO RECIFE, NA SUA CARREIRA, OU MESMO NA SUA VIDA.
Quando fui para Recife, no dia 1º de janeiro de 1994, levei meu teclado no porta-malas e a ideia era tirar umas férias e aproveitar para compor algumas músicas olhando pro mar. Claro que isso não aconteceu. A cidade vivia um momento de efervescência cultural, tinham muitos shows, os festivais de música estavam começando… Era muito legal o que estava acontecendo. O Chico Science ainda nem tinha lançado o primeiro disco. Lembro da primeira vez que vi o show dele, em um festival que nem se chamava Abril Pro Rock ainda e fiquei muito impressionada.
Fui para Recife com a intenção de ficar uns dois meses, mas logo vieram convites para tocar com várias bandas e acabei ficando. Quando me dei conta, já estava há uns cinco meses. Foi aí que decidi remontar o Lara Hanouska na cidade e ficar morando lá mesmo. Também apresentava de um programa de rádio, o Mangue Beat, com DJ Dolores, Renato L e Clarice Hoffman. Era bem legal, tocava de tudo. A gente recebia fitas gravadas por amigos de várias partes do mundo. Uma coisa que me chamava atenção em Recife é que as pessoas eram muito bem informadas musicalmente. Acho que o fato do acesso às informações ser mais difícil que em São Paulo, fazia com que as pessoas fossem mais pró-ativas na horas de descobrir novos sons. Aprendi muito musicalmente e abri minha cabeça para outros tipos de sons. Embora a minha banda não tivesse diretamente nenhuma influência da música regional e fosse mais indie-rock mesmo, trouxe alguns elementos para os meus discos, como a participação do Nido do Acordeon em Céu de Brigadeiro, tocando coisas que ele nunca tinha feito antes, e que acabou combinando, dando um toque especial.
Tenho recordações muito legais da época que vivi em Recife. Muita festa no Francis Drinks, bar do Grego, shows lisérgicos, conhaque Dreher à beira do Capibaribe, Soparia, Teppan… Além disso, casei com um pernambucano que é meu parceiro musical, o Luciano Buarque. Voltei algumas vezes à cidade por causa da família, com o nosso filho, hoje com 4 anos, mas sinto falta de tocar em Recife. Acho que a última vez que toquei foi em 2001. As pessoas me cobram um pouco isso e eu gostaria de ir, basta surgir uma oportunidade.
MUSTANG BAR, NOME DE SEU NOVO DISCO, É UM BAR DO RECIFE, CERTO? ESTA HOMENAGEM É UMA FORMA DE MOSTRAR QUE A CIDADE AINDA ESTÁ, DE CERTA FORMA, INCORPORADA A SUA MÚSICA OU A VOCÊ, COMO ARTISTA?
Claro, a época que passei em Recife foi de grande inspiração musical. A música “Mustang Bar” é do Luciano, que é um recifense, grande cronista dos tipos sujos que se perdem pela noite. Ela reflete um pouco esse espírito.
Era muito legal o que estava acontecendo (no Recife dos anos 1990). O Chico Science ainda nem tinha lançado o primeiro disco. O vi em um festival que nem se chamava Abril Pro Rock ainda. Fiquei muito impressionada
JÁ QUE VOCÊ COMENTOU DA LETRA DA MÚSICA, OUVINDO O DISCO, ELE PARECE BASTANTE INTERLIGADO, NÃO APENAS NA HARMONIA, MAS NAS LETRAS, QUE CONTEM ALGUNS PERSONAGENS PRESENTES EM MAIS DE UMA MÚSICA. VOCÊ CONSIDERA-O UM ÁLBUM CONCEITUAL? É BASEADO EM ALGUMA HISTÓRIA REAL SOBRE ESSES SUJEITOS SUJOS QUE SE PERDEM PELA NOITE?
A ideia inicial era fazer um disco conceitual, como Fim de Semana, mas depois, pela própria sonoridade mais “garageira” do disco, priorizamos a sonoridade e os versos mais curtos. Os personagens acabaram se entrelaçando porque nossa ideia era falar sobre os tipos insones da noite. O cara que só faz besteira e tem que voltar para casa onde a Laura espera ele com uma arma na mão: a Lígia Hello Kitty, que só quer uma chance de recomeçar a vida , uma página em branco, Tem a 1/2 Maria, arrastando pelo corredor depois de uma noite daquelas, tem a ressaca imensa puxada pelo trem fantasma e tem a Laura Duvall que ninguém espera na porta do Mustang Bar e que precisa esquecer o trem fantasma , que fecha o disco. Mas tem outras coisas, como “Le Capitaine” e “Scaramanga”, que são de outras origens. “Scaramanga” é inspirada no vilão de três mamilos do filme “Homem da Pistola de Ouro”, “Brand New Robots” inspirada no “Eu, Minha Mulher e Minhas Cópias” e a “Mustang Bar”, que desfila os tipo mais estranhos que costumam frequentar bares como o próprio.
DO JEITO QUE VOCÊ ESTÁ CONTANDO, ME PARECE QUE TUDO QUE A RODEIA PODE SE TRANSFORMAR EM UMA IDEIA PARA UMA MÚSICA, UMA LETRA, UM CONCEITO. ESTOU CERTO? TUDO É REFERÊNCIA?
Certo, mas o meu processo de criação, junto com o Luciano, é muito lento, podemos demorar anos até fechar uma música. Ideias eu tenho muito rápido, sou capaz de inventar umas cinco ou seis músicas de uma tacada, sem letra, mas é aí que começa o trabalho. Somos muito criteriosos com o que vamos finalizar, o que vai para um disco, por exemplo. O Luciano tem feito mais as letras e, eventualmente, músicas também. Tanto eu como ele somos muito autocríticos e, se um não gosta do que o outro fez, provavelmente vai pro lixo (risos). Este disco foi maturado em quase quatro anos – é muito tempo -, mas gravado em duas semanas. Quando vou para o estúdio, levo uma pré-produção quase pronta, mas sabendo, principalmente, exatamente o que quero em cada música.
Céu de Brigadeiro (1999), Fim de Semana (2002) e Hotel Continental (2005) lançados pela Outros Discos
E VALEU A PENA ESPERAR ESTES 4 ANOS PARA DAR LUZ AO DISCO? ALIÁS, A MAIORIA DOS ARTISTAS CONSIDERAM O ÚLTIMO DISCO COMO O MELHOR DE SUAS CARREIRAS. VOCÊ ACHA ISSO DE MUSTANG BAR?
Com certeza! Digo que é o disco onde o resultado ficou muito próximo do que eu realmente queria fazer. Mas gostos dos outros álbuns também… Faltava na minha discografia um disco que mostrasse este meu lado mais roqueiro, mais próximo do que já rolava nos shows. Ele tem bateria, guitarras estridentes, fuzzz e casiotone. A tônica é a psicodelia sessentista, o folk, kraut rock, pop francês, etc.
PARA QUE TIPO DE PESSOA VOCÊ ACHA QUE SUA MUSICA É FEITA?
Para gente que gosta de música, sem preconceitos. Porque eu sou assim, uma pessoa que gosto de muitas coisas diferentes.
E ESSA SITUAÇÃO GERA ATÉ MESMO SITUAÇÕES INUSITADAS, NÃO? OUTRO DIA VOCÊ TOCOU NO INFERNO, UMA CASA UNDERGROUND PAULISTANA ESSENCIALMENTE ROQUEIRA, EM UM MINI-FESTIVAL CHAMADO BAILÃO FOLK, COM UM SOM QUE É UMA MISTURA MUITAS COISAS…
O show é bem rock mesmo, muito noise, duas guitarras e folk também, combinou. Tipo uma parede sonora hipnótica levando as músicas. Eu gosto de barulho (risos)! Quer dizer, desde que bem feito, claro.
VOCÊ ACHA QUE SUA MÚSICA SE PERSONIFICA EM VOCÊ?
Eu acho que sou uma pessoa bem comum, como os personagens que canto. Não acredito na glamourização dos artistas. Falo de gente que tem problemas cotidianos, simples e profundos ao mesmo tempo. Eu trabalho, pago contas, sou mãe, toco numa banda. O cotidiano está sempre presente no meu trabalho. A opressão de viver para a empresa, perder parte do dia no trânsito, acordar entediado. Mas tem também a diversão com os amigos “wasting my time”. Playing the piano, don’t play the piano!
Com quatro discos, uma biografia grande e uma banda legal, certamente eu poderia viver de música se fosse americana
MAS ENTÃO SEU LADO ARTISTA FUNCIONA COMO UM RESPIRO PARA ESSE COTIDIANO ENTEDIANTE E NÃO COMO UM TRABALHO?
As duas coisas. É um respiro, mas me dá muito trabalho. Como eu te expliquei, trabalho muito em cima das músicas, dos arranjos, as coisas não ficam prontas num passe de mágica, tem muito suor nisso. A diferença é que esse é um trabalho extremamente prazeroso. Adoro e não viveria sem ele. Fora que ele também me ajuda a levar o outro trabalho adiante, o que paga as contas (risos).
É FRUSTRANTE SER PRATICAMENTE IMPOSSÍVEL VIVER DE MÚSICA NO BRASIL?
É, mas é o preço de se tocar o que gosta. A independência nas ideias musicais é importante, mas poderíamos ter um circuito alternativo melhor estruturado, que permitisse a artistas como eu sobreviverem de música. Em outros países é muito diferente. Com quatro discos, uma biografia grande e uma banda legal, certamente eu poderia viver de música se fosse americana, por exemplo.
Stela Campos (Foto: Júlio Bittencourt/ Divulgação)
ALIÁS, O SEU RELEASE DO MYSPACE É ESCRITO EM INGLÊS. VOCÊ TEM ESSA VONTADE DE TENTAR UMA CARREIRA FORA DO BRASIL?
Não creio que poderia fazer isso neste momento da minha vida, mas meus discos tem um boa aceitação no e-music e no allmusic guide. Já dei entrevistas para gente da Bélgica, Portugal, e alguns programas de rádio no Japão já tocaram um disco inteiro. Sei lá, o mundo está muito interligado pela rede. O release inglês é só uma forma de ser compreendido por todo mundo, mas no começo era tudo em inglês no MySpace, por isso ficou assim, não foi algo tão pensado.
VOCÊ ACHA QUE O SEU SOM TEM UMA MAIOR ACEITAÇÃO OU, PELO MENOS, COMPREENSÃO, LÁ FORA DO QUE AQUI?
Acho que as pessoas ouvem lá fora sem qualquer tipo de preconceito. Elas não tem influência nenhuma quando escutam o disco, elas gostam e pronto. Não ouviram ninguém falar sobre, não leram no jornal, nada. Ouvem apenas a música. Nesse sentido, acho muito legal quando as pessoas ouvem meu trabalho em outros lugares do mundo. O fato de eu assinar o meu trabalho como Stela Campos, nome e sobrenome, faz com que muita gente imagine que se trata se mais uma cantora brasileira nos moldes mais tradicionais e chatos. Isso cria um certo tipo de preconceito para quem nunca ouviu. Mas acho que quem ouve percebe logo que se trata de outra coisa.
ACHO QUE AQUI ROLA UM POUCO DE PREGUIÇA. OU SEJA, NÃO APENAS SUA ASSINATURA COMO STELA CAMPOS, MAS O FATO DE O SEU SOM NÃO SER DEFINIDO FACILMENTE, EXIGINDO UM CERTO TEMPO E ATENÇÃO QUE AS PESSOAS NÃO TÊM USUALMENTE. VOCÊ ENXERGA ISSO TAMBÉM?
Talvez. De fato, é difícil definir o que eu faço, mas eu me divirto com isso. Até na prateleira das lojas eles tem problemas. O Mustang Bar vai ser mais fácil, vai para a prateleira de rock… Acredito. As pessoas querem ouvir coisas muito presas a fórmulas fechadas. Os artistas que eu mais admiro são justamente aqueles que conseguem transitar dentro de várias possibilidades sonoras. Acho muito careta seguir um padrão para indie rock, folk ou qualquer outra coisa.
Stela Campos (Foto: Júlio Bittencourt/ Divulgação)
JÁ QUE VOCÊ FALOU DO SEUS GOSTOS, ENTÃO, PARA FECHAR, QUERIA SABER, UM DISCO, UM FILME E UM LIVRO QUE VOCÊ OUVIU/VIU/LEU ULTIMAMENTE E RECOMENDA.
Disco que está no meu carro hoje: Vintage Violence do John Cale. Filme que vi recentemente, Wall-E, com meu filho e o livro de cabeceira da semana é Crime e Castigo do Dostoiévski.
BOM, ACHO QUE É ISSO! ALGUMA MENSAGEM, DECLARAÇÃO, PEDIDO, COMUNICADO, OU ÚLTIMAS PALAVRAS? FIQUE A VONTADE!
Uma coisa que não falei foi sobre a banda, formada pelo Clayton Martin, (cidadão Instigado), Missionário José, André Édipo e Vini Pardinho. O Clayton é o guitar hero que me ajudou a produzir o disco junto com o Missionário José nos dias mais frios de São Paulo à base de muito chocolate e conhaque… E, de resto, lembranças aos amigos! Ouçam o Mustang Bar… Valeu!