REDESCOBRINDO O ARTISTA
Depois de permear a estante de leitores da Marvel e fazer sucesso nos anos 1990, Roger Cruz retorna com trabalho autoral
Por Paulo Floro
Editor da Revista O Grito!, no Recife
Quando ele apareceu, os tempos eram outros, e como todo leitor de quadrinhos veterano deve lembrar, os super-heróis da Marvel e DC exerciam enorme influência no que era consumido e produzido nos quadrinhos no Brasil. É curioso que um dos maiores expoentes dessa era, Roger Cruz, lance agora um álbum autoral, Xampu, pela editora Devir.
O livro é uma viagem com toques autobiográficos, sobre amores e ilusões dos anos 1980. Trata de filmes, livros, estilo e memórias daquela época, com certa idealização romântica por parte do autor. É um álbum emotivo, um dos melhores trabalhos de Cruz. Artista de estilo mutante, este trabalho mostra um lado pouco conhecido de quem ficou conhecido por títulos como X-Men, em sagas famosas, como A Era do Apocalipse (1997).
Nascido em São Paulo, Cruz tem outros trabalhos autorais, que merecem vir à tona, mas seu background na indústria norte-americana, o coloca como um nome de referência para este universo. No final dos anos 1990, ele trouxe inovações para as comics, como a influência dos mangás. Numa época em que diversos outros brasileiros se aventuraram no mercado norte-americano, ele foi um dos tiveram mais prestígio, ganhando trabalhos de importância. Outro que ainda está com nome em alta é Mike Deodato Jr., outro resquício desta época.
Seus desenhos também foram bastante criticados por especialistas do meio dos quadrinhos. E houve uma polêmica com um artista contemporâneo, Joe Madureira, que tinha um estilo parecido. Ele se esquiva em responder esta pergunta, abaixo.
Nessa entrevista exclusiva para a Revista O Grito!, Roger Cruz reflete sobre sua atual importância para os quadrinhos, seus trabalhos autorais, como este recente Xampu e conversa, claro, sobre a Marvel Comics.
O Grito! – Acredita que muitos leitores só agora tiveram contato com um trabalho autoral seu, com este lançamento de Xampu?
Roger Cruz – É bem provável que sim. Xampu está sendo vendido em livrarias e o trabalho que faço para editoras americanas é vendido aqui em bancas.
E o que aconteceu com seus outros trabalhos fora do universo de super-heróis? Tem planos para eles? Lembro de algumas edições raras que chegaram a poucas gibiterias na época.
A maior parte das histórias que fiz antes do trabalho com super-heróis foi publicada em revistas de editoras bem pequenas e assinava como ‘Rock’. Poucas pessoas conhecem esse material que foi publicado no final dos anos 1980. Eram hqs curtas e bem experimentais. Não tenho planos para elas. No momento, estou trabalhando em outro projeto pessoal que se chama Gutigutz, uma HQ de humor.
Existe uma relação afetiva com Xampu, um traço autobiográfico. Impossível ler e não imaginar que tudo aquilo é bastante real.
É o que as pessoas tem dito. Eu pretendia mesmo passar a ideia de que tudo aconteceu como está no livro, mas tem muita ficção também. Alguns personagens são combinações de diversas pessoas que conheci e muitos desfechos de situações podem ou não ter acontecido. Mas acho que isso não importa tanto. O mais importante para mim é que o leitor se identifique com os personagens, com a história como foi contada.
Como foi a ideia para lançar o livro? A Devir já estava de olho nesse projeto, você já o tinha pronto há muito tempo?
O Leandro, que é hoje editor da Devir, já conhecia a primeira hq publicada em 1997 e sempre me incentiva para fazer um álbum porque ele sabia que eu tinha outras histórias já escritas. Quando decidi produzir o álbum, procurei a Devir e apresentei a eles um preview e eles toparam publicar.
Você pode adiantar mais detalhes sobre esse Gutigutz?
Gutigutz será o meu próximo trabalho autoral de hq. Mas no momento, estou focado em outro trabalho mais urgente que ainda não posso divulgar.
É inevitável falar do sucesso que você teve desenhando para editoras norte-americanas. Como é seu relacionamento com elas hoje em dia? Qual o último trabalho?
Ainda tenho contrato para mais 1 ano de trabalho com a Marvel. O relacionamento é bom, mas hoje não pretendo dedicar tanto tempo aos comics como dediquei no passado. Quero ter tempo para produzir minhas HQs. Meu ultimo trabalho com artista regular foi X-Men: First Class.
Como foi seu contato com os editores da Marvel? Lembro que você desenhou uma edição importante da maior saga deles no momento, que era a Era do Apocalipse.
A relação com editores nunca foi muito próxima nessa época. Não tínhamos internet na época. O trabalho era xerocado para ser enviado por fax para aprovação do esboço da página. E depois de pronta, as páginas eram enviadas por Fedex para os EUA onde seriam arte-finalizadas. Meu trabalho na Era de Apocalipse é realmente o mais conhecido. Fico feliz por ter participado de uma saga tão importante.
Ainda tem muita repercussão na sua carreira esse período? Muitos leitores e conhecidos ainda comentam, entram em contato?
Sim. Ainda é um trabalho muito comentado. A série vendeu muito bem e ainda hoje os encadernados são vendidos.
Como era a rotina daquele período, até você se dedicar à Fábrica de Quadrinhos? Qual a lembrança mais remota que você pode citar daquela época?
Eu era muito inexperiente e não tinha ritmo de produção. Foi uma época muito estressante. Os prazos eram bastante apertados e eu era um desenhista muito lento. Hoje tenho uma postura muito diferente com relação ao trabalho e não trabalho 7 dias por semana como trabalhava nessa época.
Você chegou a propor a criação de algum personagem para a Marvel?
Nunca propus nada para eles por achar que meus projetos não se encaixam no perfil das publicações da editora. Estou trabalhando lentamente nos projetos pessoais enquanto continuo com alguns trabalhos para o mercado americano. Mas não são trabalhos visando de imediato a publicação nos EUA. Desejo publicar primeiro aqui, no Brasil.
Qual seu personagem favorito e o que mais gostou de desenhar.
Sempre gostei de desenhar personagens da Marvel. Talvez o meu estilo de desenho tenha mais a cara da Marvel. Gosto de desenhar os X-Men e, por sorte, foram os personagens que mais desenhei na minha carreira. Pra desenhar, gosto do Ciclope, Colossus, Noturno e Lobo. Mas fazer por muito tempo enjoa e é bom poder variar.
Seu estilo mudou muito desde aquela época. Chegou a ser comparado a outro artista do período, Joe Madureira.
Essas mudanças acontecem naturalmente para alguns artistas. Eu gosto de experimentar novos materiais e novas soluções gráficas. Era inevitável para mim que essas mudanças ocorressem. Gosto também de adequar a arte à idéia. No caso do Xampu, busquei uma arte mais suja, disforme, com muito preto. Para as Gutigutz, estou usando a linha clara, sem áreas de preto, o desenho das figuras menos estilizado.
Como é sua rotina de trabalho atualmente?
Trabalho até as 4 ou 5 da manhã e consigo dormir por volta das 6 da manhã. Durmo até o meio-dia e começo a trabalhar. Mas não fico esse tempo todo na prancheta. Leio e respondo e-mails, vejo TV, ouço música, dou uma volta no bairro, faço o almoço, etc. Ou seja, não é um horário rígido de trabalho.
O mercado de quadrinhos mudou bastante. Como você vê este momento atual? Como professor, o que diria a um aluno que planeja se aventurar trabalhando com isso?
O mercado mudou e está bem mais fácil produzir e publicar quadrinhos. O mercado americano está aberto para todos que desejam ser desenhistas e muitas editoras já publicam projetos pessoais de artistas de diversos países. Editoras brasileiras também estão investindo em publicações nacionais. Mas se alguém pretende se tornar um profissional da área, precisa ler quadrinhos, estudar quadrinhos, entender como o mercado funciona, saber exatamente o que quer dizer e como dizer. Se pretende ser apenas desenhista, precisa estudar desenho porque a concorrência é enorme. Precisa estudar e praticar narrativa. O artista de HQa precisa saber contar a história com o desenho através dos quadros.