“A poesia sempre é o começo de tudo pra mim”, é como conta Luna Vitrolira sobre o seu primeiro contato com a arte. A multiartista transforma a sua obra em um universo vasto de sentidos e apelos sensoriais, desdobrada em linguagens que exploram a escrita, a fala, a música, a dança, o teatro e o audiovisual evocando a urgência de existir e persistir na existência. O “multiverso” de Luna vai ocupar o palco do Teatro de Santa Isabel neste sábado (28), dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. Os ingressos estão disponíveis com venda antecipada no Guichê Web.
“Mesmo que eu transite e que eu tenha expandido para várias linguagens artísticas, além da literatura, a poesia continua sendo sempre o meu ponto de partida, o que me estrutura, meu ponto de eixo e de transitação”, contou Luna. Hoje, com 30 anos de idade, a artista tem fresca na memória as razões que tornaram o seu contato com a literatura desde muito nova, um encontro libertador. Além de ter sido o start na carreira, a palavra exercia uma função de sobrevivência (ou sobre vivência) para Gabrielle, nome de batismo da artista. Já muito cedo, ela foi vítima do racismo e da gordofobia. “Fui uma criança que sofreu muito bullying, apanhei na escola, levei muita rasteira e não tinha uma rede de amigos, de coleguinhas na infância. Então, o diário, era a minha forma de existir. Eu existia quando escrevia nele”, lembrou, contando também que o diário era destino de letras de músicas que a tocavam na época.
Ainda que a poesia não fosse um atributo presente em seu ambiente familiar, Luna entende que a arte é uma herança de sua ancestralidade. Os parentes da mãe da cantora são todos do canavial, em Tracunhaém, na Zona da Mata Pernambucana, lugar onde o Maracatu Rural tem grande força e representa um resgate às manifestações da comunidade preta. Ela conta que em períodos de carnaval, seu avô sedia a própria casa para servir de apoio aos realizadores do Maracatu Rural. Com a ancestralidade sendo um dos grandes pontos das inspirações artísticas de Vitrolira, ela sente ser a continuidade de seus antepassados. “Não tive contato com isso na infância, mas isso já existia, então, essa energia já era presente”, refletiu.
Tal energia teve o incentivo da mãe como aditivo, quem, fã do Cordel do Fogo Encantado abriu os horizontes da filha para esse mundo da prosa, do poema. “Passei a amar o grupo quando assisti o show e eu me tornei muito fã. Inclusive, nesses momentos em que eu ficava muito triste, quando eu sofria bullying, eu escutava muito Cordel do Fogo Encantado, e era como se me transportasse para um universo paralelo onde tudo era perfeito”.
Aos 14 anos de idade, Luna começou a declamar poesia sem pretensões profissionais, mas só por volta dos 16, quando chegou ao Sertão do Pajeú, percebeu que a paixão pela palavra poderia levá-la a voos maiores. “Quando eu fui para São José do Egito, com os meus 16/17, eu vi crianças antes de dizer o próprio nome, dizendo poesias longas, declamando literatura de cordel. Foi nesse território do Pajeú, do sertão de Pernambuco, que eu entendi que a poesia era muito mais que uma forma literária, era uma forma de vida, de se comunicar, se relacionar, de existir no mundo”, compartilhou.
As declamações na universidade, em bares e as participações em festivais literários construiam o nome da artista, mas foi em 2019 que ela ganhou notoriedade ao ser finalista do prêmio Jabuti 2019, com o livro Aquenda – O Amor Às Vezes É Isso.
O Multiverso de Aquenda
A realização de Luna perpassa, fundamentada na palavra, a poesia, a música, o teatro e o audiovisual. Aquenda é um projeto que é expandido a partir da gama de elementos de significados, releituras e interpretações presentes em si mesmo. E mais: A obra retrata traumas, de Luna e suas semelhantes em aspectos estéticos, sociais e políticos. De forma íntima e com pensamento coletivo, Aquenda vive da atividade de admitir as próprias dores, ao mesmo tempo que busca canalizar todo o caos em prol do autoconhecimento.
O processo de construção do projeto veio entre 2014 e 2015, quando o Brasil já vivia momentos conturbados na política, em meio as orquestras do golpe que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, e diante da potencialização dos movimentos feministas. “Me vi dentro daquele processo, me compreendendo dentro do mundo, me entendendo enquanto gênero, pensando muito sobre o porque que eu sofro tantas violências, como é que funciona essa estrutura racista, machista, desse mundo construído. Isso foi reverberando dentro do meu processo de criação porque era aquilo que eu estava vivendo e tentando compreender”, explicou a artista.
A partir disso, Luna participou de vivências artísticas em colônias penitenciárias masculinas e femininas. Sobretudo nas femininas, encontrou através dos relatos das detentas (em sua maioria negras), o cenário ponto de inspiração de sua obra: O amor. E não só como o sentimento forjado nas ideias ocidentais, e sim como um instrumento de opressão, de poder e de manipulação que atinge e amassa a vida de corpos marginalizados pela sociedade. “O espaço é totalmente violento, opressor e machista. É um lugar que não tem espelho, as mulheres passam a não lembrar da sua aparência física. Ao ouvi-las, fui me percebendo nisso, e percebendo as várias violências que eu e as mulheres da minha família sofremos. Nesses discursos, eu percebia que o amor era um grande dispositivo de poder e manipulação, que muitas das vezes levaram àquelas mulheres a essa situação carcerária de serem esposas de traficantes, ou por terem feito algo porque os maridos mandaram fazer”, contou.
“Eu parei para pensar sobre como a humanidade é criada com uma ideia de amor que a gente não consegue alcançar. E essa ideia do amor, é uma ideia introjetada que vem do ocidente. A gente performa esse modelo, sem pertencer, porque estamos no sul, distantes disso. Isso nos anulou em diversas camadas de ancestralidade de quem somos. E como a sociedade é patriarcal, machista, ela coloca a mulher nesse lugar de subjugada, como um ser inferior que precisa de outra metade para se sentir completa, para existir no mundo, para ter um status social, para ser respeitada”, refletiu a artista.
Nesse contexto nasceu Aquenda, para questionar o amor e ressignificá-lo a quem tanto foi alijado por ele. “Muitas pessoas de nós só conhecem esse tipo de afeto, que é opressor, violento. A gente precisa falar sobre isso para que a gente perceba a nossa vivência mas que também canalize para que não se torne apenas gatilho. Precisamos canalizar isso para a cura, para a nossa liberdade”, incentivou.
Ainda que o livro tenha vindo primeiro ao mundo em 2018, a ideia inicial sempre trouxe atrelada a dupla que move a carreira de Vitrolira, a música e a poesia, compondo um disco que cumpriria com uma das missões de Luna: ser ouvida. “Essa necessidade de fazer o disco primeiro veio por dois motivos: um porque eu já me relacionava com a música, e o outro é que eu sempre escrevi para declamar. Meu contato com a poesia foi através da oralidade, então eu sempre escrevi para dizer. Fazia muito mais sentido para um disco que as pessoas iriam me ouvir porque é isso o que eu faço nas ruas, nos palcos, nos festivais. Mais do que lida eu queria ser ouvida”, ressaltou.
Em 2021, a poesia e a música que guiaram Luna desde quando mais jovem cantava no grupo São Saruê, formaram um disco de 10 faixas, bebendo de influências como Nina Simone, Mocinha de Passira, Itamar Assunção, Erykah Badu, Lauren Rio, Naná Vasconcelos, com quem fez oficinas de percussão, além do Cordel do Fogo Encantado, sempre inclinada as realizações da cultura popular e da música periférica.
O álbum veio acompanhado de um curta-metragem que levou Aquenda a outras representações, como explicou Luna: “Quis fazer o filme para trazer uma outra experiência. Eu queria canalizar isso, e para fazer isso precisei trabalhar numa estética de pertencimento, um lugar de empoderamento, representatividade. Eu estar ali como uma mulher negra com aqueles cabelos, me relacionando com a minha ancestralidade, num ambiente que era um engenho de açucar completamente em ruínas, representando todo um sistema escravocrata arruinado que a gente vem lutando há séculos para destruir, para que a gente possa se erguer enquanto povo, nação”. E “Somos descendentes de reis e rainhas. Somos a nobreza. Nossa história não começa e nem termina na dor, a dor é parte dessa história. E o filme fala sobre isso: Nossa história não é sobre dor!”, bradou e completou a artista.
Toda a dinâmica dessas linguagens ganhará o palco do Teatro de Santa Isabel no sábado (28). O show estreou em São Paulo e chega inédito e com apresentação única no Recife. Com uma equipe de participantes que compreende toda a diversidade sonora e performática do disco, conta com representantes da cultura popular, jazz, música experimental, dança contemporânea e twerk.
“Se tem uma coisa que a gente vai dar é o nome! Passamos o ano de 2022 inteiro ensaiando para montar esse show. Foi um processo super incrível, super divertido, um laboratório de muitíssimo aprendizado”, contou Luna. “O show está muito denso, muito forte, a sonoridade muito pesada, vai atravessar muito as pessoas. Vai ser um show que vai gerar muito impacto, e vai surpreender. Eu acho que se tem uma palavra que pode representar isso é: Surpreender”.
Serviço:
Estreia do show “Aquenda – o amor às vezes é isso”, de Luna Vitrolira, no Recife/PE
Sábado, 28 de janeiro de 2022, às 19h
Teatro de Santa Isabel (Praça da República, 233 – Santo Antônio, Recife/PE)
Ingressos: R$ 60 inteira / R$ 30 meia
Venda antecipada pelo Guichê Web
Classificação Livre.