SONHO CUMPRIDO
Veterano da cena independente, Martin, uma das metades do duo Agridoce se lança em trabalho solo
Por Renata Arruda
“O ano era 2003 e eu tava no olho do furacão. Tinha acabado de largar família, amigos e emprego em Salvador para perseguir, com meus comparsas do Cascadura, meu sonho de rock’n’roll na cidade de São Paulo. As coisas não estavam saindo exatamente como tínhamos planejado e a vida andava dura. Seguíamos uma rotina de andanças intermináveis pela cidade para entregar material aqui e ali, tentando entrar em shows e eventos sem pagar e às vezes passávamos dias a fio sentados em frente ao telefone num apartamento sem mobília, mas cheio de esperanças e expectativas. As portas, na época, não pareciam dispostas a se abrir pra nós e estávamos sem grana nem pra comer direito, mas apesar de tudo existia uma sensação de liberdade e destemor que era deliciosa e é dessa sensação maravilhosa que eu me lembro mais que tudo”.
Foi com esse texto que Martin Mendonça, ou apenas Martin, colocou no ar o teaser do seu primeiro álbum solo. Vindo de uma cena fértil, porém difícil, em Salvador (“precisávamos nos submeter a condições humilhantes para poder tocar, quase sempre com equipamentos sucateados e a troco de nada ou quase nada”), as coisas começaram a mudar para o músico quando Pitty o convidou para ocupar o lugar do falecido Peu como guitarrista da sua banda, em 2004. De lá pra cá, Martin se arriscou no projeto Martin e Eduardo, em parceria com o baterista Duda Machado (Pitty), e ao lado de Pitty, formou em 2011 o duo folk Agridoce, um trabalho que impressionou crítica e público por mostrar um lado mais doce e sensível de ambos.
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Lançado digitalmente pela Deck no último dia 10, Quando um Não Quer não se parece com nenhum dos seus trabalhos anteriores – ainda que a faixa que abre o disco, “Linda”, soe como se pudesse ter sido incluída em algum trabalho do Agridoce e “Rotina” tenha ecos de “20 Passos” -, e apresenta uma sonoridade elétrica e dançante ao longo das nove faixas produzidas pelo próprio Martin. Contando apenas com uma música não escrita por ele, “Coisas Boas” (Fabio Cascadura/ Ricardo Flash Alves), que durante a época como artista independente “teve um impacto fulminante em mim, fiquei instantaneamente apaixonado e passava horas a fio tocando ela e sempre me emocionando”, segundo ele – o álbum traz ainda a participação de diversos músicos amigos: Chuck Hipólitho (Vespas Mandarinas) divide os vocais com Martin na mesma “Coisas Boas”, Pitty e Lira cantam em “Mesmo”, Fabio Cascadura em “Sun”, Jajá Cardoso (Vivendo do Ócio) em “Caos” e Léo Cavalcanti em “Algum Lugar”, um dos destaques do disco.
Na entrevista a seguir, Martin fala um pouco sobre sua carreira como músico (“fiz de tudo um pouco”), os serviços de streaming (“curto qualquer ferramenta que encurte a distância entre a obra e quem quer apreciá-la”), o cenário independente (“está vivendo um bom momento e acho que a tendência é crescer e melhorar”) e, claro, sobre Quando Um Não Quer. Confira:
Hoje em dia você é conhecido por ser “o guitarrista da Pitty”, mas a sua carreira começou bem antes disso. Você poderia contar um pouco sobre o início, como você começou a se envolver com música? Li que chegou até a ter uma banda cover do Deep Purple.
Comecei na guitarra relativamente tarde, lá por volta dos 16, 17 anos e até 2000 toquei no circuito alternativo de Salvador em várias bandas de metal e classic rock. Fiz um pouco de tudo, defendi repertórios autorais, toquei em bandas cover, gravei vinhetas e jingles para publicidade, atuei como músico de estúdio, mas o grande marco divisor foi ter me jogado na estrada com o Cascadura em 2003 a caminho de São Paulo, ali eu estava começando a plantar o que colho hoje na minha carreira.
Como era a cena na Bahia na época em que você começou, para quem estivesse interessado em ter banda de rock autoral? Acha que mudou muita coisa de lá pra cá?
A cena era muito fértil e o meio era muito difícil. Tínhamos bandas incríveis como Dr. Cascadura, Headhunter D.C., Lisergia, Dois Sapos e Meio e The Dead Billies, mas precisávamos nos submeter a condições humilhantes para poder tocar, quase sempre com equipamentos sucateados e a troco de nada ou quase nada. Tenho pouco contato com a cena atual de Salvador, mas as notícias que me chegam de lá não dão conta de muitas mudanças.
Como foi a concepção de “Quando Um Não Quer”? Eu li que ele foi composto entre 2013 e 2014, o que seria mais ou menos no mesmo período em que a Pitty preparava o “SeteVidas”. Já era um projeto antigo ou surgiu enquanto você estava em estúdio com a banda?
Algumas canções, como Outra História, já existiam desde a gravação do Dezenove Vezes Amor (disco que fiz em parceria com Duda Machado, baterista de Pitty, no ano de 2010), algumas foram compostas nos dois anos seguintes e outras nasceram durante o processo de gravação das bases em dezembro de 2012. Suspendi os trabalhos durante todo o processo de pré-produção, gravação e preparação da turnê do Setevidas e só retomei o disco no meio do ano passado.
Chegaram a compor alguma coisa juntos?
Não.
Você lançou o projeto Agridoce, ao lado da Pitty e, antes, ainda houve o Martin e Eduardo, em parceria com o baterista Duda Machado – ambos autorais. Quando surgiu essa vontade de explorar o seu lado cantor?
Por volta de 2008, quando compus minhas primeiras letras e melodias. Até então eu era bem inseguro quanto a conseguir cantar e escrever.
E o lado compositor; desde quando você compõe?
Comecei a compor assim que comecei a tocar, criar riffs e levadas sempre foi um lance natural pra mim. Conviver e trabalhar com compositores tão talentosos como Fábio Cascadura e Pitty me ajudou a levar isso pra outro patamar, ambos sabem muito e são super generosos.
O que costuma te inspirar a compor? Você é do tipo que costuma sempre escrever alguma coisa, ou as letras surgem depois das melodias?
Não tem muito método, às vezes vem de um jeito, noutras de outro, mas na maioria das vezes a música aparece primeiro e encaixo a letra depois. É quase sempre um lance meio mediúnico, a coisa “baixa”, não costumo me programar ou ter muito controle, o tema fica fermentando na cabeça e em algum momento em que estou com o violão estudando ou simplesmente tocando as coisas se encaixam.
Como foi o processo de composição para esse álbum? Já tinha em mente as pessoas que iria convidar para cantar ou a ideia para as participações foi algo que surgiu depois?
Algumas já tinha em mente, outras pintaram durante o processo. Sempre achei que o clima urgente de “Caos” tinha a ver com Jajá Cardoso e queria um cantor extraordinário (Léo Cavalcanti, na minha opinião o melhor de sua geração) pra coroar a base furiosa de “Algum Lugar”. Já Lirinha e Fábio Cascadura apareceram pra me salvar em “Mesmo” e “Sun”, completando as letras das composições, que são as duas únicas parcerias do disco.
Esse disco é diferente tanto dos seus projetos anteriores, quanto o que você faz na banda Pitty. Quais foram as influências, em termos de som?
Acho que esse foi o projeto mais desprovido de influências conscientes que já gravei. O fato de ter tanta gente envolvida, cada um trazendo seu sotaque e seu repertório fez o caldeirão ficar bem rico. E, pelo fato das músicas terem sido compostas ao longo de tanto tempo, fica difícil pra mim identificar essas influências.
Em uma entrevista você declarou que, por medo, nunca tinha assinado só o seu nome nas coisas que fez e no lançamento de “Plano Sequência”, teaser do álbum, você comentou também que “achou justo dividir os créditos da composição” com Guri Assis Brasil, por ele ter criado uma “melodia tão bonita no slide”. Essas declarações sugerem um pouco de insegurança, mas também muita generosidade. É assim mesmo?
Vixe, que difícil! Acho que tem bastante dos dois aí, mas sem um lance de afirmação de caráter, na real eu não gosto da ideia de ficar com nada que não é devidamente meu.
A princípio, o disco está saindo somente em versão digital. Ao mesmo tempo em que as plataformas de streaming facilitam o acesso do público ao trabalho dos artistas, alguns se sentem insatisfeitos com a remuneração. O que você acha disso?
Rapaz, eu acho massa e curto qualquer ferramenta que encurte a distância entre a obra e quem quer apreciá-la, e na real o artista não ganha bem com remuneração de venda de disco há muito tempo, pelo menos no meu nicho de mercado.
Hoje a maioria das bandas vai para São Paulo, onde encontra maiores oportunidades. Aqui no Rio o pessoal resolveu se organizar em um coletivo chamado #acenavive, de maneira que as bandas de rock pudessem se ajudar com divulgação, logística, etc. Como você vê a cena rock brasileira, principalmente a independente, em termos de oportunidade de crescimento e público?
O circuito independente está vivendo um bom momento e acho que a tendência é crescer e melhorar. Se por um lado a ausência de casas de show de médio porte dificulta as coisas, por outro a cena está muito fértil, com muita coisa legal pintando e vejo cada vez mais bandas brasileiras indo tocar em shows e festivais no exterior. A exemplo do #acenavive no Rio, outros coletivos estão aparecendo pelo Brasil, está rolando um clima de união e companheirismo bacana e isso fortalece bastante a cena.
Pra finalizar, como os estão os planos para trabalhar o disco? Já pensa em algum show de lançamento, turnê, etc.?
Estou fazendo algumas apresentações no formato acústico, acompanhado do Gui Almeida e de um percussionista aleatório, enquanto preparo algo pra fazer em breve com a banda completa. A agenda de Pitty anda bem cheia (graças a Jáh!) e não dá pra planejar muito, mas acho que logo consigo marcar algo.
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