Temas como justiça social e o papel dos afro-descendentes na sociedade brasileira sempre estiveram presentes na obra do quadrinista e artista plástico Marcelo D’Salete, autor de obras como Noite Luz (Via Lettera) e Encruzilhada (Leya). Mas agora o autor empreende seu projeto mais ousado, Cumbe, uma HQ que narra a resistência de negros durante o período da escravidão no Brasil.
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Cumbe mostrou resistência cotidiana dos negros escravos
O livro acaba de sair pela editora Veneta e traz uma narrativa com o ponto de vista do negro escravo. “Tentei desviar dos estereótipos de representação do negro na mídia e explorar outras possibilidades”, explica Marcelo em entrevista à Revista O Grito!. O trabalho ainda é marcado por uma pesquisa sobre a cultura banto, que trouxe à HQ o linguajar do período e até um glossário. Ao mesmo tempo em que traz novas compreensões sobre um dos períodos mais violentos de nossa história, a HQ também tem um lado muito pessoal e autoral. “Não é um tratado ou teoria sobre a escravidão, é uma tentativa de visualizar o que pode ter sido esse período a partir de um certo ponto de vista, considerando as possibilidades da linguagem dos quadrinhos”.
Conversamos com Marcelo sobre o processo de criação da HQ, mercado editorial e a situação atual dos negros no Brasil. “Precisamos de muito mais para combater uma prática de exclusão de séculos no Brasil.”
Como surgiu a ideia de fazer Cumbe?
O livro Cumbe surgiu de pesquisas sobre o Brasil colonial e sobre a escravidão. Percebi que existem poucas HQs sobre esse período a partir da perspectiva dos grupos negros que estavam aqui. Depois de uma intensa leitura sobre escravidão e sobre cultura banto, surgiu a ideia das quatro histórias que compõem o álbum. Os povos bantos que vieram da região do Congo e Angola foram os mais presentes naquele momento, por isso busquei mostrar algo dessa cultura nas narrativas.
Seu trabalho sempre foi marcado por uma preocupação social e também sobre a trajetória dos afro-descendentes no Brasil? Esta sempre foi sua inquietação? Como é tratar desse assunto como arte?
Minhas histórias desenvolveram um contorno próprio e preocupações sociais e etnicorraciais tornaram-se um elemento importante em cada uma delas. De certo modo, é um tema que considero ausente dos trabalhos que lia anos atrás. Essas preocupações vieram a partir de músicas de rap, filmes do cinema novo, da boca do lixo paulista, do realismo italiano e de alguns quadrinhos europeus, brasileiros e americanos. Tratar de histórias negras nesses quadrinhos, de racismo e outros fatores, foi uma forma de mergulhar em um universo de possibilidades novas, mas também difícil e espinhoso. Para isso, tentei desviar dos estereótipos de representação do negro na mídia e explorar outras possibilidades.
A distância social entre brancos e negros ainda continua imensa. Muitos jovens negros são mortos na periferia.
Suas histórias sempre tiveram um tom urbano, com detalhes de ruas, ambientações em cidades brasileiras. Em Cumbe somos transportados para um outro momento. Como foi construir esse novo cenário?
Foi um novo aprendizado sobre desenho. No meu caso, estava muito confortável desenhar prédios, ruas e postes. Desenhar Cumbe foi quase reaprender a traçar do zero. No início fiquei inseguro, mas depois consegui entrar no clima das histórias. A pesquisa de imagens foi essencial. Vi muitas obras do Eckhout, Franz Post, Rugendas, Debret e assisti a muitos filmes com temas históricos.
Uma das coisas mais legais de Cumbe é a preocupação com a linguagem dos escravos na época. Como foi fazer essa pesquisa?
Esse foi um dos pontos mais difíceis. O Allan da Rosa, escritor, poeta e pedagogo, me ajudou a compreender melhor as possibilidades de usar esses termos de origem banto nas histórias. Tentei usar as palavras sem que isso afetasse a fluência da leitura. A cultura de origem banto aparece principalmente em nosso português. Palavras como marimbondo, quindim, moleque, lambança, malungo, cafuné e outras estão presentes em nossa língua por causa dessa influência banto. Além disso, tentei trazer elementos próprios desse universo também nas lendas. Por exemplo, o monstro quibungo, espécie de bicho papão angolano, aparece em relatos de lendas do início do século no nordeste.
Você comentou que Cumbe é parte de um processo artístico seu, de encontrar a história dos povos brasileiros. Quais seus próximos passos nesse sentido?
Minha intenção não é exatamente encontrar “a” história brasileira, mas apresentar narrativas sobre nosso contexto social e histórico. Procuro realizar leituras singulares sobre esses fatos. Cumbe não é um tratado ou teoria sobre a escravidão, é uma tentativa de visualizar o que pode ter sido esse período a partir de um certo ponto de vista, considerando as possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Tenho muito interesse em elaborar novas histórias sobre conflitos em grandes cidades e também sobre momentos históricos especiais no Brasil. No momento, estou comprometido em realizar uma narrativa sobre o Quilombo dos Palmares, um dos principais pontos de resistência do Brasil colonial. Não pretendo contar a história definitiva de Palmares, mas elaborar uma narrativa interessante e pessoal sobre este momento.
Muito se discute hoje sobre o atual momento social do Brasil. Uma leitura otimista diz que nunca vivemos uma justiça social como agora. Por outro lado, temos números bem ruins sobre a juventude negra, com alta mortalidade, além do déficit salarial, racismo, etc. Qual sua visão sobre o atual momento do país?
Ao que parece, houve avanços nas últimas décadas, mas retrocesso em diversas outras. A distância social entre brancos e negros ainda continua imensa. Muitos jovens negros são mortos na periferia. Além disso, tivemos casos extremamente graves de violência e morte de homens e mulheres negros, a Cláudia, o Amarildo, o camelô morto brutalmente pela polícia paulista. Há novos discursos conservadores tomando espaço na mídia e política, contra as religiões afro etc. Esse conflito já existia antes, mas agora está presente de modo mais direto. Isso pode ser positivo, pois sempre os grupos negros organizados lidaram com a falsa ideia de democracia racial, onde falar de racismo era tabu. Contra esses discursos conservadores precisamos de mais instrumentos sociais efetivos para combater o racismo e a discriminação. Os jovens negros não podem ficar marginalizados e fora das universidades. As políticas de inclusão deste grupo nas universidades federais, como cotas, são importantes nesse sentido. No âmbito do ensino básico, a Lei 10639 e 11645 é outro fato relevante para introduzir história e cultura negra e indígena nas escolas. Infelizmente, isso ainda é pouco, precisamos de muito mais para combater uma prática de exclusão de séculos no Brasil.
Você está otimista em relação às eleições deste ano?
Em São Paulo, temos um governo estadual preocupado apenas com segurança, os índices sobre educação são péssimos, os salários dos professores são muito baixos e é comum turmas com mais de 40 alunos nas salas. Bem, estamos muito longe de uma educação pública de qualidade. A educação pública, um fator que pode colaborar para mudar índices de desigualdade a longo prazo, é propositalmente relegada ao esquecimento. Os principais candidatos estão preocupados em manter as coisas como estão e em favorecer os mesmos de sempre. Os índices sobre desigualdade mudaram pouco nesses anos. Enfim, não há motivos para estar otimista. Creio que as eleições são uma parte do processo, mas a ação e cobrança da população é fundamental se queremos mudar as coisas.
Cumbe está saindo com uma edição bem bonita da Veneta. Como avalia o atual momento do mercado dos quadrinhos?
Temos bons artistas produzindo e publicando novas obras. Este ano, em especial, há lançamentos de peso como Tungstênio, do Quintanilha, O fim do Mundo, do Ducci, Revolta, do Caliman, entre outros. Há muitas pessoas produzindo e diversos eventos de HQ em todo país. É difícil acompanhar tudo. Creio que estamos em um bom momento de produção e de novas formas de apoio (governo, Catarse etc.). Cumbe, por exemplo, foi selecionado pelo ProaC de São Paulo, um programa de apoio à cultura. Não tenho uma visão muito detalhada do mercado de quadrinhos, mas considero que temos avanços. Por outro lado, ainda sinto que precisamos reafirmar os quadrinhos não como leitura apenas para crianças, mas como veículo com potencial para tratar de temas complexos e adultos.
Para encerrar, uma pergunta subjetiva. Você consegue descrever a lembrança mais remota de querer fazer quadrinhos?
Ler quadrinhos era algo comum em minha infância. A vontade de querer fazer quadrinhos surgiu a partir de uma antiga lousa na casa da minha mãe em São Mateus, zona leste de SP. Meu irmão, Marcos, e eu costumávamos desenhar bastante nessa lousa. O desenho era muitas vezes copiado dos quadrinhos das bancas. A lousa e os desenhos tornaram-se um elemento de ligação entre nós. Creio que dessa interação nasceu meu interesse pelo desenho e pelos quadrinhos.
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