Por Lucas Alencar
No cenário nacional de quadrinhos, Lourenço Mutarelli sempre se considerou um estranho no ninho. Sua arte em nanquim, suas realidades tortas seus anti-heróis são perturbadores, de uma maneira positiva. Perturbam a zona de conforto, exigem pensamento e reflexão e não trazem consigo atestados de lógica e sentido.
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Perfil: o novo Mutarelli
Entrevista: Mutarelli, um autor em trânsito (2008)
O autor fez parte da produção underground de fanzines e quadrinhos nos anos 1980 e 1990. Como não produzia charges, caricaturas e tiras de humor, sucesso à época, foi deixado de lado por editoras e por grande parte do público.
Porém, aquelas mentes espertas que deram uma chance à produção do artista paulistano não se arrependeram e foram saciadas por obras como Transubstanciação (1991), Mundo Pet (2004) e a trilogia em quatro volumes Diomedes, compilada em 2012 pela Quadrinhos na Cia., selo de HQs da Companhia das Letras.
Se não achou simpatia no mundo da nona arte, Mutarelli diz ter encontrado na literatura seu verdadeiro terreno. Pela Companhia das Letras, o autor lançou os elogiados O Cheiro do Ralo (2002), bem recebido também nos cinemas, protagonizado por Selton Mello, A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (2008) e O Natimorto (2009).
O escritor e desenhista de 50 anos fez uma palestra no Itaú Cultural, em São Paulo, para conversar sobre sua arte e nos encontramos com ele para um bate-papo.
Mutarelli, como você começou a se interessar por quadrinhos e desenhar?
Meu pai tinha uma coleção muito grande de clássicos dos quadrinhos, então sempre tive contato. Com o tempo, eu senti vontade de me expressar dessa forma e foi acontecendo… Quando comecei a desenhar, impressionei meu pai. Achei isso legal. Tornou-me diferente, no bom sentido.
Com pouco mais de 20 anos, você foi diagnosticado com síndrome do pânico. A sua arte foi uma maneira de lutar contra esses problemas que te atormentavam?
Sim, produzir me ajudou muito, porque me impulsionou a melhorar. Era uma forma de ir me tratando. Querendo ou não, quando eu me expressava, tratava de uma série de questões que eu não conseguia lidar na vida real. Eu encarava como algo terapêutico, também. Foi o jeito que encontrei de me tratar.
E ainda é um processo terapêutico?
Eu tomei medicação por 28 anos e não tenho mais esses problemas. Hoje, vejo como uma forma fundamental para que eu exista, para refletir sobre muita coisa, pensar mais profundamente sobre algumas questões.
O que aconteceria com o Mutarelli se parasse de ler e escrever?
É muito difícil responder. Eu até tentei… Fiquei três anos sem escrever, um ano e pouco sem desenhar, para experimentar o silêncio. Mas eu gosto muito, me dá muito prazer. Eu não sei o que aconteceria. Hoje, acho que seria mais tranquilo que há um tempo. Ainda assim, é uma atividade que faz com que eu me sinta muito confortável.
Quanto seus trabalhos são sobre você?
Meus livros e quadrinhos são autobiografias emocionais. Falam de coisas que vivi e senti, mas não necessariamente nas mesmas situações. No papel, tem muita metáfora do que vivi, são coisas muito sensoriais, mas não existenciais, necessariamente. O que eu fiz de mais autobiográfico está em Mundo Pet, compilação de histórias curtas, que misturam um pouco da minha existência com as ideias que tenho.
Por que você costuma dizer que não foi bem recebido no mundo dos quadrinhos?
Porque eu não fui, mesmo. Não fui, de jeito nenhum. A cena de quadrinhos tinha uma característica muito forte de humor e o que eu fazia não era, necessariamente, humor. Eu era muito fechado também, então não teve uma química boa, como na literatura.
É como um amor não correspondido? Você é bem resolvido?
É… Eu não sou bem resolvido. É uma coisa que eu nunca soube resolver.
Li em algumas entrevistas que você gostou de trabalhar com referências fotográficas no seu desenho. É um recurso que ainda utiliza?
Durante muitos anos, eu não usava referência. A partir do Diomedes, comecei a usar. Na verdade, depende muito do que estou fazendo, da necessidade que sinto de ter uma referência ou de não ter. Cada trabalho é uma situação particular, é uma experimentação, então mudo o processo que fiz anteriormente para experimentar um novo. O que me motiva é isso: experimentar.
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* Lucas Alencar é autor do blog Em Solo Nacional, dedicado aos quadrinhos brasileiros.