É muito difícil fazer literatura erótica sem escorregar no mau gosto e na pornografia barata; muitos escritos do gênero acabam parecendo material digno de revistinha de banca de jornal. Em seu primeiro livro, Descompasso (Independente), disponível gratuitamente em seu site, Mikaelly Andrade, poeta natural de Quixeramobim, consegue oferecer uma poesia erótica inspirada, sensual, carregada de simbolismos femininos, algumas vezes até mordaz. Mas não se restringe a isso.
Na primeira parte, intitulada “Palavra”, os poemas versam sobre sentimentos. Há muita desilusão, muito sufoco, muita resignação. A imagem que transmitem é de alguém que se mostra controlada por fora quando interiormente vive um turbilhão de medo, dúvida, insegurança e também de amor. São poemas de um certo vazio, de sentimentos mantidos pra dentro, de abandono e necessidade de renascimento em alguns momentos lembram o trabalho da poeta mineira Ana Martins Marques. Em “Palavra”, os poemas ressoam como aquele momento que vem depois do caos: ainda perplexa, após ter perdido tudo, a poeta não tem outra escolha se não a de recomeçar.
Já na segunda parte, “Corpo”, os poemas celebram o prazer e o gozo feminino, sem vergonha e sem culpa. Tratam do êxtase quase com reverência, mas não se restringem somente à celebração e procuram lembrar que nos jogos eróticos muitas vezes as mulheres ainda são vistas como acessórios para o prazer masculino — o sexo pode tanto ser um momento de poder como de submissão. Na poética de Mikaelly há a forte presença das imagens do corpo, da boca, do material, do físico. Também da voz e do estremecimento. “Palavra e corpo” dá nome a um de seus poemas e não poderia ser melhor definição sobre a poesia da autora cearense.
Além de Descompasso, a autora tem em seu portfólio a participação na Antologia de Contos Literatura BR (Editora Moinhos, 2016), o zine Alguns Versos Pervertidos e Outros Indecorosos (Independente), colaborações em publicações literárias e os projetos Escritoras Cearenses e Mulheres na Literatura. Por e-mail, Mikaelly Andrade conversou com a Revista O Grito! sobre o seu trabalho e os primeiros passos de sua carreira.
Geralmente escritores têm o histórico de escrever desde muito jovens. Eu imagino que com você não tenha sido diferente. Quando foi que você passou a valorizar seus escritos enquanto expressão artística e resolveu se assumir escritora? E o que fez você decidir que era o momento de tirar seus escritos da gaveta e começar a publicar?
A verdade é que eu morria de preguiça de fazer uma redação! Na escola, até o segundo ano (já com dezessete), eu não tinha interesse pela arte da escrita e não consumia literatura com afinco. Era um livro aqui, outro acolá, sem compromisso. As minhas leituras eram por entretenimento. Eu escrevia na adolescência, mas era em diário. Eu utilizava a escrita como um remédio para as minhas crises existenciais de adolescente, não levava a sério como literatura. A palavra até hoje é a minha cura.
Quando fiz meu primeiro blog em 2009, foi que me veio à consciência que era isso que eu queria. Muito antes, pela ligação forte que eu tenho com a palavra eu desejava ser professora de Português, eu já havia decidido isso quando fazia a sexta série (risos). Mas aí foram nascendo os blogs e junto deles um amor e uma necessidade imensa de escrever, mesmo que eu não chegasse a publicar depois. Eu tinha a mania, digamos, de jogar no lixo todos os meus textos, tanto que não tem nenhum blog meu anterior na internet, eu deletei todos.
A minha insegurança fez (e ainda faz) eu desvalorizar (e muito) minha escrita, o que me dá a certeza de que eu devo continuar são os momentos em que eu “morro” quando não escrevo. Já trabalhei em várias profissões, porém nenhuma me acolheu, eu sempre me sentia frustrada por estar fazendo outra. Aos poucos fui percebendo e tomando coragem para enfrentar medo, insegurança e timidez e fazer o que eu realmente amo.
Como funciona o seu processo criativo?
Não tenho nenhum método de criação. As ideias surgem das cenas do cotidiano, de uma matéria no jornal, da cena de um filme, de uma música, de uma palavra, de um sorriso, das dores que sentimos, de tudo. Reservo, quando posso e não estou muito cansada, a madrugada para escrever, pois todas as anotações são feitas nos intervalos de tarefas domésticas, de brincadeiras com o meu filho, da interrupção de um sonho e por aí vai! Uma vez li algo que dizia que a madrugada é amiga da mãe artista e é verdade viu!
Antes de Descompasso você lançou Alguns Versos Pervertidos e Outros Indecorosos, que agora ganhou o status de zine. Houve alguma insatisfação com o trabalho?
Não. O “alguns versos…” foi um experimento, como eu não tinha publicado nada parecido eu quis ver como seria a aceitação. Ele ganhou esse status de zine por causa da edição revisitada que está disponível no meu site agora, aquela primeira já era. Não houve nenhuma insatisfação, pelo contrário, “alguns versos…” me aproximou mais dos meus leitores e me trouxe muito felicidade e certeza para continuar.
Falando sobre o Descompasso, em um primeiro momento, ele foi disponibilizado na íntegra em uma longa página de blog. O que te levou a tomar uma decisão tão inusitada de publicar um livro nesse formato?
A possibilidade de ser mais lida. Eu quis facilitar as coisas, tanto pra mim quanto para o leitor. Eu decidi disponibilizar o livro de uma forma que o leitor não teria trabalho algum, era só entrar na página no blog e pronto! Recentemente disponibilizei para download também, assim a leitura poderá ser feita de forma off-line. Outro motivo que me fez optar por esse formato, foi o fato dos blogs terem servido como cadernos de exercícios de escrita pra mim e isso me trouxe proximidade com algumas pessoas que liam meus escritos e encorajavam-me a continuar.
Primeiro livro oficialmente lançado: quais são os planos que você tem para ele e para a sua carreira a partir de agora?
Para o Descompasso eu desejo que ele chegue ao maior número de leitores possível! Quero me organizar melhor para poder dedicar mais tempo a minha escrita, que pra mim vai muito além de um hobby. Eu continuo escrevendo poemas, alguns eu publico no blog ou no Instagram, outros ficam guardados; além dos poemas, estou revisando uns contos que eu tinha arquivado. Estou com a pretensão de reuni-los em um volume para publicação, desta vez quero me associar a uma casa editorial independente.
O zine “Alguns versos pervertidos…” é todo baseado em poesia erótica – algo presente também em “Descompasso”. Pode falar um pouco sobre a sua relação com a arte erótica e qual a importância do erotismo para você? Esse é um gênero que você pretende continuar explorando?
Eu quis trabalhar em poemas eróticos para me ajudar a quebrar preconceitos que eu tinha em relação à mulher com o sexo, e foi muito importante por que eu conseguir desconstruí-los e pude perceber o quão importante é confrontar o sistema que impede que mulheres explore sua sexualidade. Eu quero sim continuar explorando esse gênero, o erotismo é um assunto enriquecedor, tanto como tema para poemas quanto para crescimento social mesmo, é algo libertador em vários sentidos.
Quais autoras e autores eróticos inspiram você? Você percebe alguma diferença entre o erotismo escrito por um homem daquele feito por mulheres?
Com certeza Anaís Nïn e Hilda Hilst! E conheci recentemente Seane Melo, que escreve contos eróticos no Médium.
Sim, o erotismo escrito por homens é geralmente aquele em que a mulher não passa de um objeto, um acessório feito apenas para saciar a vontade masculina. Já o erotismo escrito por mulheres revela uma mulher que explora sua sexualidade descobrindo seu corpo e seus desejos. Claro que não vou generalizar, não li todos os livros de literatura erótica, mas estamos fartos de saber que homem geralmente objetifica a mulher, seja num poema, num conto, num romance, num filme e por aí vai.
Voltando ao “Descompasso”, muitos dos poemas flertam com a desilusão, o sufoco e a resignação. E embora a sua escrita não faça eco ao subjetivismo de Clarice Lispector, acho que há uma similaridade, no sentido de serem textos que começam falando de atividades corriqueiras, como por exemplo “troquei os móveis de lugar” e de repente há um arroubo. Você pode falar um pouco a respeito da construção dessa estrutura?
Bom, meus poemas são um arroubo para mim, então, sinceramente não sei como te explicar. Essa “estrutura” que você me pergunta não é algo que eu tenha arquitetado, sabe?! Por isso repito tantas vezes que sou uma amadora! rsrs
Além do erotismo, os temas obscuros permeiam seus escritos. Por exemplo, contos como “A Sombra” trazem cenas de abuso sexual, enquanto que em “Perdi você de vista ao anoitecer” e na crônica “Tentativas de ser X estar sendo” o assunto presente é o suicídio. O que te atrai nesses temas?
A realidade. “A sombra” eu escrevi baseado numa matéria que eu li no blog da Lola Aronovich. Já o microconto e a crônica que você cita tem o suicídio como tema por ser um assunto que está presente na minha vida e por eu acreditar que é algo que deve ser escrito sobre, que deve ser lido e deve ser conversado. São dois assuntos extremamente importantes e que causam muita dor, por isso devem obrigatoriamente estar sempre em pauta.
Paralelo à sua carreira de escritora, você encabeça um projeto bem-sucedido no Instagram, o Mulheres na Literatura (ex-Leia Mais Mulheres). Pode comentar um pouco sobre como surgiu a ideia do projeto e qual a concepção dele? Qual o balanço que você faz do projeto desde sua criação até o momento? E quais os planos você tem para ele?
A ideia surgiu como um diário de leitura por causa da hastag #leiamulheres2014. Depois eu abri o projeto para receber textos de autoras como forma de incentivar tanto a escrita quanto a leitura de mulheres. O projeto funciona também como um guia de leitura, por causa dos posts que apresento autora e bibliografia. Já pensei muitas vezes em desistir dele, por causa de tempo, de questões pessoais e por motivos de enumerar prioridades, tanto que ele está meio abandonado, mas não o excluí definitivamente por ter muito carinho por ele. Recebi uma proposta de uma escritora muita querida e estamos desenvolvendo juntas, vamos ver se dá certo. Em breve veremos se sim ou não. Por enquanto, ele segue como um guia de leituras.
Outro projeto paralelo é o Escritoras Cearenses, dedicado a “resgatar vozes de mulheres cearenses que foram esquecidas, divulgar o trabalho de autoras pouco conhecidas e autoras já consagradas”. Pode falar um pouco também sobre a criação deste projeto e seus planos para ele?
O Escritoras Cearenses nasceu da necessidade que eu tenho de conhecer mais as autoras do meu estado. Primeiramente criei um clube que não deu muito certo por questões de organização e tempo, mas é algo que quero retomar em breve. Por enquanto sigo divulgando eventos literários e as minhas leituras no perfil do projeto na rede social Instagram (@escritorascearenses).
Que escritoras cearenses você descobriu através do projeto e poderia recomendar?
Carmélia Aragão, Sara Síntique, Ayla Andrade, Vitória Régia, Silvia Moura, Maria Thereza Leite. Essas foram algumas.
Por falar nisso, como é a cena literária no Ceará? Há espaço e oportunidade para autores iniciantes e independentes, especialmente mulheres?
Existe sim uma cena literária ativa em Fortaleza. Infelizmente eu não participo tanto quanto eu deveria, pois nem sempre posso frequentar os eventos literários, clubes de leitura e saraus que estão acontecendo. Acontece todo domingo a Feira Índice no Centro Cultural Dragão do Mar, que é um ótimo espaço para autores iniciantes e independentes, pois há estandes com zines e acontece uma troca entre autores, sem falar no sarau onde poetas têm oportunidade de apresentar seus poemas; por falar em sarau, há também o Sarau da B1 que acontece na periferia onde jovens se reúnem e se unem pela poesia. No Centro Cultural Banco do Nordeste, Talles Azigon coordena a Literatura em Revista, uma roda de bate-papo sobre literatura, livros e amor a esse universo. Sem falar no número de clubes de leituras que vêm aumentando, e aqui em Fortaleza já contamos com vários: #LeiaMulheres Fortaleza, Leituras da Bel, Dito&Feito, Leituras Feministas, Amor em-cena e o Clube de Leituras da Confeitaria Sublime. Esses espaços são ótimos para autores iniciantes e independentes usarem para apresentar seu trabalho, se aproximar e interagir com seu futuro leitor.
Em seu site, você dedica uma seção para entrevistas intitulada “Mulheres Extraordinárias Que Eu Conheci Através da Internet”, o que é uma ideia muito bacana! A primeira entrevistada foi a ilustradora Ana Novaes, cujas artes fazem um perfeito conjunto com suas poesias. Pode contar um pouco como vocês se conheceram e firmaram essa parceria?
Eu conheci a Ana através do perfil da também ilustradora, Iêda Carvalho, outra mulher talentosíssima que eu admiro muito e acompanho seu trabalho. Eu estava pesquisando por mulheres ilustradoras para trabalhar comigo na zine “Alguns versos pervertidos e outros indecorosos”. Bom, quando meu olhar repousou sobre a arte da Ana ele quis morar ali pra sempre! Daí eu segui o perfil dela, entrei em contato e falei sobre o meu projeto no qual eu queria trabalhar, ela foi muito atenciosa e topou na hora. A partir desse trabalho que fizemos juntas ficamos amigas. E agora estamos trabalhando juntas novamente em um novo projeto intitulado “There is no algebra”. “Um projeto sobre pessoas. 2+2=5. Uma poeta e uma desenhista criando para um mundo mais livre.”
Quem são as mulheres extraordinárias que você admira?
Nossa, muitas! Minha mãe com certeza é a primeira que vêm a minha cabeça. Um grande exemplo de força e sabedoria para mim! Minhas amigas (incluindo você!). Madonna, Frida Khalo, Nina Simone, Elza Soares, Jarid Arraes, Amy Winehouse, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf, Laerte, Lola Aronovich, Clara Averbuck e Marina Colasanti. E ainda tantas outras que a memória falha é injusta por não lembrar.
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