Entrevista Capicua, de Portugual

capicua

RITMO E POESIA
De Lisboa, uma rapper que ultrapassa a mera condição de crítica social e confere otimismo e celebração a todos os indivíduos

Por Pedro Salgado
Colaboração para a revista O Grito!, em Lisboa

“Para fazer rap, é preciso ter coragem para que se faça ouvir a nossa voz, expressar uma opinião e ter espírito competitivo”. Estas são as coordenadas de Ana Matos Fernandes (Capicua), que depois de dois EP´s em colectivo e de uma mixtape a solo se afirma como a MC portuguesa do momento. A sua poesia urbana envolve os beats com tonalidades femininas mas, acima de tudo, consagra a liberdade de expressão.

O álbum homônimo, agora editado, disponível para download gratuito, revela o lado mais autobiográfico da artista, traduzido num acumular de experiências pessoais dos últimos anos da sua vida.

No trabalho está também presente o espírito brigão da cidade do Porto, de onde é natural. E a fasquia de objeto do hip hop foi superada. Em conversa com a Revista O Grito! Capicua falou do novo disco e das suas motivações.

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Crítica do trabalho homônimo de Capicua

Sente que “Capicua” é o álbum que sempre quis concretizar?
O primeiro trabalho sempre foi uma quimera que quis alcançar e, ao mesmo tempo, tive um certo receio de o iniciar, porque não me sentia preparada. Mas, quando comecei o processo de gravação do disco coloquei a fasquia alta e tentei superar-me e romper as minhas limitações e, enquanto objetivo, acho que foi conseguido. No entanto, o álbum que sempre quis concretizar será o próximo. Sinto que não resolvi toda a minha carreira com este trabalho ou que esteja completamente satisfeita. Acho que o próximo disco é o meu maior desafio, mas estou contente.

O single “Maria Capaz”, sendo um manifesto de intenções, funciona também como o seu cartão-de-visita. Pode definir o que significa o “espírito crítico do Porto”?
Essa música é o que chamamos de rap ego-trip. Basicamente, é um registo competitivo em que o MC louva as suas qualidades técnicas e desafia os seus pares a fazerem melhor. Ou seja, tem um certo tom sarcástico e humorístico e “Maria Capaz” não foge à regra. Relativamente a essa expressão, refere-se ao fato das pessoas da cidade do Porto terem uma atitude inflamada. Eu quis brincar um pouco com isso e aponto esse aspecto na música. Mas, o tema é um cartão-de-visita no sentido em que não sendo representativo do disco, porque é mais leve do que as outras faixas, mais intimistas e emocionais, ainda assim incorpora uma atitude destemida para fazer um álbum. Por um lado, com tão poucas mulheres no rap é preciso ser um pouco maria-rapaz (risos). Por outro lado, fiz uma piada com a sigla MC, dizendo não significar Mestre de Cerimônias, mas sim Maria Capaz, aludindo ao exotismo feminino e louvando a sua atitude aguerrida, porque o hip hop é muito assim e sendo uma cultura marginal, tem sobrevivido através de uma postura competitiva saudável.

No tema “Os Heróis” aborda várias preocupações sociais sem rodeios. Sente que cabe a esta geração de músicos a responsabilidade de agitar consciências adormecidas?
De uma forma geral, quem tem o microfone na mão tem responsabilidades. Se esse momento for utilizado para coisas positivas, para inspirar as pessoas e fazê-las pensar melhor ainda. No rap, especificamente, como a palavra tem um protagonismo acrescido, comparativamente a outros estilos musicais, não utilizar a mensagem para a reflexão e espírito crítico ou trazer esperança e estimular a mudança e pro-actividade, seria um desperdício de energia e defraudaria a responsabilidade de um MC. É inevitável abordarmos temas mais fracturantes ou emergentes e relativos à realidade envolvente. Existe um pouco a ideia de que o rap é uma música de crítica social e em grande medida é verdade, mas não é só isso. Também significa festa, união e elevação do amor dos indivíduos. Se pudermos combinar as duas coisas, ou seja, fazer canções que critiquem a realidade e ampliem a exigência social, mas conferindo-lhe otimismo, estaremos a fazer o contrário dos noticiários televisivos que só deprimem as pessoas.

A força e a crueza das letras advem da sua educação marxista e formação acadêmica ou de outras vivências?
Somos fruto da nossa educação, vivências e formação. Sempre gostei de palavras. Quando era garota adorava fazer rimas e escrever poemas. É o que mais me agrada conceber. Acho que é uma mistura de todas as existências que eu tive, da minha formação, escola, música que eu escutei e uma predisposição que já exibia para compor. Ao mesmo tempo, a crueza das palavras e esse impacto mais direto que se imprime à escrita é algo que se trabalha e é muito comum no rap. É um discurso directo e cru que colide com o ouvinte. O interessante desta linguagem musical é que parece que estamos a falar com as pessoas diretamente, ao ouvido.

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As suas influências musicais cingem-se apenas ao hip hop e ao rap?
Sou muito ecléctica nas minhas escolhas musicais. É lógico que cresci a ouvir reggae e hip hop e tenho preferência pela música negra, como é também o caso do soul, funk e rap. Mas, também gosto dos cantautores portugueses: Zeca Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco, que os meus pais ouviam muito. Influenciou-me bastante a forma como eles utilizavam a palavra, a responsabilidade da mensagem e o emprego da língua portuguesa para fazer poemas musicados. Também gosto de música popular brasileira e flamenco. Nunca fui roqueira nem gostei de música depressiva. Se calhar, uma das razões pelas quais gosto de música negra é pelo fato de, mesmo nos momentos melancólicos, ser mais positiva.

Para onde pretende transportar as suas canções no futuro?
A ambição de todos os músicos é que elas cheguem ao máximo de pessoas possíveis. Estou muito contente que “Capicua”, não é o meu primeiro trabalho, tenha alcançado um nicho mais abrangente e não se tenha limitado ao hip hop mais underground. Foi uma vitória romper essa barreira e chegar a um público abrangente. Como objetivos individuais, para além de promover a minha música o mais possível, gostava de um dia fazer canções para outras pessoas e outros estilos. Agradava-me escrever um fado e estabelecer parcerias com outros intérpretes.