ELES NÃO QUEREM SABER DE LIMITES
Banda recifense se transforma, lança disco novo e diz que é preciso catarse para compor
Por Paulo Floro
Da Revista O Grito!
Foto de Louise Vas
Quando surgiram no cenário pop do Recife, a Bande Dessinée tinha uma proposta que parecia tímida: tocar clássicos do cancioneiro popular francês. O que ninguém sabia – mas muitos esperavam – é que a banda usaria essa referência francófona para burilar seu som e soltar um trabalho autoral e bastante original. Ainda foram mais longe ao antecipar uma tendência da cena independente nacional de beber na fonte de autores franceses como Serge Gainsbourg.
Depois de uma série de shows pela cidade, a banda se jogou no estúdio para gerar Sinée Qua Non, disco que tem produção de Missionário José e André Édipo, do Jardel Music (SP) e a masterização assinada pelo americano Don Grossinger, nos EUA. O disco tem participações especiais de Zé Cafofinho, Juliano Holanda e Jr. Black. A arte foi assinada por Raul Luna. Por email, a Revista O Grito! entrevistou Filipe Barros (guitarra e vocal) e Miguel Mendes (contrabaixo). Na conversa, a nova cena de Recife, o novo álbum, e claro, França.
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Crítica de Sinée Qua Non, por Juliana Dias
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Vocês começaram ligados a uma proposta francófona, interpretando clássicos do pop francês. Houve uma mudança grande daquele início de carreira para o momento atual que vocês vivem agora?
Filipe – Esse período inicial foi bem importante para a gente ter algumas referências em comum e achar nosso jeito de produzir coletivamente. A sonoridade da banda foi sendo criada nesse período. Mas, quando a gente parte pra criar nossas próprias músicas a história é diferente. Não sei se isso é uma regra, mas pra mim compor precisa de uma certa catarse, é uma relação mais orgânica menos racional. Você não fica pensando tenho que fazer isso ou aquilo, você vai lá e faz. Acho que essa foi a prinicipal mudança, da gente ser o que a gente quiser ser, de experimentar a liberdade de se deixar levar pelas composições e o que elas pedem. Lógico que nesse processo vem as suas referências, isso é natural, mas o que você está criando é mais relevante para você naquele momento. Um coisa que sempre falo é que esse contexto que nos inspirou do pop francês da década de 60 tinha esse DNA, de não se prender a nada, estilo, ritmo, idioma, esse espírito a gente carrega pra o nosso som. Gainsbourg tinha muito isso de se reinventar, de fazer um disco diferente do outro, de experimentar, a gente bebe dessa fonte e transforma a nossa maneira.
Essa mudança também determinou o nome da banda? Qual a proposta por trás do novo nome e o que vocês têm de histórias em quadrinhos?
Miguel – Na época da mudança de nome, de Bande Ciné para Bande Dessinée, postamos isso no nosso blog: “Em 1989, o cantor e compositor, Jorge Ben mudou seu nome artístico para para Jorge Benjor, o motivo alegado? Numerologia. A mesma desculpa foi dada por vários outros artistas anteriormente e o real motivo pela mudança ninguém sabe ao certo. Desconfia-se que Jorge Ben precisou se tornar Jorge Benjor para evitar confusões com o músico George Benson, que fazia muito sucesso no exterior e Jorge Ben começava a deslanchar sua carreira nos Estados Unidos. A confusão na pronuncia em inglês dos dois nomes acabou provocando a mudança do nome do artista brasileiro mesmo ele sendo conhecido em todo o país há quase 30 anos. Após 22 anos do ocorrido descrito acima, a Bande Ciné que tem 3 anos de história vem informar que a partir de 1/1/11 passará a se chamar Bande Dessinée. Qual o motivo? Numerologia. Veja só: Somando a quantidade de letras do novo nome e os números da data escolhida o resultado dá 13, que é considerado por muitos o número da sorte. (…)”
A estes motivos, se junta uma característica importante da Bande: a tendência a brincar com a sonoridade das palavras em diversas línguas. Assim é que se explica a música “Setubanalidades”, que ao mesmo tempo que remete ao bairro de Setúbal em Recife, traz um jogo de palavras em francês e português. Assim também podemos dizer que “Ciné” ainda continua presente no nosso nome pela proximidade de sonoridades, só que agora incorporada ao termo “Bande Dessinée”, história em quadrinhos em francês. Na verdade, tantas idéias só demonstram essa vontade de dialogar com outros tipos de arte, seguindo essa tendência multimídia que a internet não nos permite ficar distante. Cinema, história em quadrinhos, rock, chachacha, jazz, francês, italiano e português são elementos da mistura pop que tentamos condensar em nosso som.
Como vocês pensaram o novo disco? Existe algum conceito por trás da concepção do álbum e como foi o processo de composição?
Filipe – Eu não gosto muito de tendenciar a escuta das pessoas, de explicar letras, ou o sentido do disco. Acho que esse disco tem alguns temas recorrentes, como amor, relações amorosas, confissões sobre a vida e uma vontade de se deixar levar pelo som e pela cadência das músicas. O título do disco, Sinée Qua Non, fala um pouco isso, dessa necessidade de existência, de viver as coisas, de experimentar. As canções do disco foram se aglutinando naturalmente, algumas ficaram de fora do processo, mas isso foi muito a partir dos nossos arranjos, íamos tocando e vendo as que mais funcionavam, foi meio darwiniano, seleção natural das espécies musicais. O grande trabalho do disco foi de dar uma unidade trabalhando com uma variedade grande de estilos, idiomas, etc. Neste aspecto a produção musical de Missionário José e André Édipo (Jardel Music) teve um papel fundamental, de ter esse olhar sobre o disco e a sua sonoridade.
O disco é cantado em francês, português, italiano. Vocês chegam até a criar palavras novas? Como é compor em tantas línguas?
Filipe – As canções demoraram um tempo para começarem a sair. Eu já há um bom tempo, mas não tinha nada para a Bande. Começamos em 2007 a fazer show, só em 2008 começaram a surgir as primeiras músicas e aí a partir de 2009 elas começaram a entrar no nosso show. Não sei porque, nem como, mas em um momento específico, elas começaram a sair, a fluir, acho que depois de viver e tocar muito com a Bande alguma coisa distravou e aí foi massa. Sempre acreditei que o idioma, é um jeito diferente de experimentar as sensações, os sentidos das palavras e de dar novos timbres às melodias. Aí fui vendo que dependendo de como ia compondo a música era melhor fazer em um determinado idioma. Às vezes também vinham palavras, uma melodia e aí pronto o caminho já estava indicado era só ir lapidando. Agora o processo é o mais orgânico possível, deixa o som vir, deixa as palavras baixarem. O que é mais racional é o ajuste final, de mudar uma palavra ou outra, checar o contexto, mas o grosso vem muito rápido. Eu normalmente vou criando a música mentalmente sem o auxílio do instrumento, gravo uma melodia que veio no suporte que estiver mais fácil na hora, aí depois de lapidar um pouco na cabeça mesmo sento, boto no papel a letra e acho a harmonia.
Além da França, que está imediatamente ligado ao som de vocês, que outras influências – não só musicais – que vocês trazem?
Miguel – A cultura pop francesa da década de 60, na verdade, é o ponto de partida para juntar os elementos de composição. Isto porque somado a essa influência, nosso som também orbita num ambiente de ritmos latinos, misturado ao da música brasileira, trazendo uma atmosfera dançante aos nossos shows. A idéia é construir uma identidade musical própria e contemporânea, partindo dessa temática e misturando doses de jazz, iê-iê-iê, rock e surf music. O grupo também tem uma atração muito grande por cinema. A música “Perdizes”, disponível em nosso soundcloud, foi tema da personagem Camila da trilha musical do fime de Luci Alcântara A Minha Alma é Irmã de Deus, baseado no livro homônimo de Raimundo Carrero.
Filipe – Eu procuro ser o mais atento possível às novas bandas e aos sons que me chegam. Gosto muito de cinema também, vejo de tudo, tenho um interesse grande nos filmes de Lars Von Trier, mas não sou cinéfilo. É meio injusto ficar pinçando aleatoriamente as influências, me sinto bem exposto e me influenciando todo dia por um bocado de gente.
Existe uma cena atual dentro do indie nacional influenciado pelo pop francês? Vocês se veem parte dessa cena?
Filipe – Isso rendeu até várias matérias em jornais nacionais como o Estadão e O Globo, a gente tem alguns amigos de sampa que se relacionam com isso, como a Bárbara Eugência e Juliana R., que fizeram participações nos nossos show por lá. O Edgar Scandurra, Alex Antunes, Suite, Thiago Petit, Eduardo Beu (produtor), Juliana Kehl e Michele Wankenne são outros artistas nos quais vejo essa influência. Aqui em Recife tem Catarina que curte muito e se você prestar atenção tem umas músicas que flertam com isso. Mas não sei, tem meio um hype em cima disso, todo mundo virou meio fã de Gainsbourg. Eu acho que tem artistas que são próximos, são amigos e fazem coisas juntos, mas não vejo uma cena musical. Não gosto dessa ideia de reverenciar, o maior legado que levo é a inventividade, mas essa característica também está na música brasileira, no rock. Os mutantes já cantavam em francês, Roberto Carlos venceu o maior festival da Italia, San Remo, então acho muito limitado só ver essa influência ou destacar apenas um contexto musical.
E aqui no Recife, como é a relação de vocês com as bandas novas daqui? Vocês acompanham a cena local?
Miguel – Sempre procuramos ouvir o que de novo Pernambuco anda produzindo, e é muita coisa! Estamos trabalhando em parceria com o pessoal do projeto “PE Nova Música”, que faz o trabalho de apresentar novas bandas ao público. Estamos sempre fazendo parcerias, até porque o intercâmbio musical entre bandas é proveitoso para todo mundo. Faremos uma festa de lançamento do nosso disco no dia 28 de outubro, no Mercado Eufrásio Barbosa, com produção do “PE Nova Música”, contando ainda com a Mamelungos e com a recém lançada A Nave.
Filipe – Eu procuro acompanhar muito de perto, tenho vários amigos e procuro ouvir o que tem sido feito. Acho que tem se produzido muito e tem muita coisa legal. A prova disso foi a coletânea da Sound an Colours, revista da Inglaterra, sobre os novos sons de pernambuco. Esses dois últimos meses e esses que virão serão de vários lançamentos, discos bem produzidos, bem gravados, compositores talentosos, eu vejo uma singularidade nesse momento. Das bandas e artistas mais recentes que vi gosto muito de Tagore, Dunas do Barato, Feiticeiro Julião, Caçapa, A Nave, o novo disco de Tibério e ontem tive o prazer de ver a estréia do Nebulosa Quinteto, que é um projeto fantástico de jazz vanguardista.
Tocamos com Tagore recentemente, com a Devotos e vamos tocar com os Mamelungos e A Nave, acho isso importante. Eu pessoalmente procuro sempre dar força, divulgar a rapaziada, aglutinar. Acho que os músicos precisam se ouvir mais, independentemente da geração, sair das suas ilhas, se expor à troca. Faço disso uma missão para mim, independente de ter reciprocidade, mas é legal porque sinto várias respostas positivas e pessoas diferentes se conectando. Música para mim é um passaporte de verdade, nesse novo disco tem parcerias com Zé Cafofinho, Juliano Holanda, André Édipo, Jr. Black, Helder Lopes (letrista e poeta) e Karine Legrand. No final das contas essas parcerias por menor que sejam fortalecem o teu trabalho, espero que esse processo só se amplie nos próximos trabalhos.
Qual a lembrança mais remota que vocês têm de querer formar a banda?
Filipe – Me lembro dos ensaios da Vermute em 2006, uma banda que tinha com Thiago Suruagy que já era influenciada por France Gall, fazíamos uma versão em português para “Tu vuo’ fa’ l’americano”, a partir disso que dei a ideia da Bande Dessinée. Thiago achou meio viagem, mas topou pela identificação com a música. Depois, me lembro indo na casa de Tati para mostrar as músicas e apresentar a proposta. Ela topou de cara e daí pra frente foi o processo de juntar as pessoas e começar a tocar. Falando assim, me faz lembrar do quanto que a gente já caminhou e todos os desdobramentos dessa ideia inical e do clima que a gente conseguiu criar.
Se pudessem escolher um artista foda (vivo ou morto) para fazer uma parceria, quem escolheriam e porque? Miguel – Artistas como France Gall, Dalida, Brigitte Bardot e Serge Gainsbourg são influências importantes na música da Bande Dessinée, fazer uma gig com esse pessoal seria muito legal.
Filipe – Dos mortos eu não consigo nem pensar, deixa a turma descansar né? Agora vivo seria massa fazer alguma parceria com Jean-Claude Vannier que fez os arranjos mais fantásticos de Gainsbourg em vários disco entre eles o Histoire de Melody Nelson, ele inclusive já tocou com a Orquestra Imperial. Fazer algo com Tow Waits seria foda também. Mas, sei lá eu sou muito pé no chão. Prefiro pensar em tocar com o Edgar Scandurra que está próximo e é um cara que admiro pra caramba. Tem muita gente que admiramos que não é super famoso, mas que é uma honra danada dividir o palco e trabalhar juntos. A vida se encarrega disso, o bacana é vivenciar o que ela tem para te oferecer.