Entrevista: Autores da HQ Sabor Brasilis

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SABOR BRASILIS, UMA HQ NOVELEIRA
Parte importante da cultura brasileira, a novela muitas vezes ainda é tida como “arte menor”, assim como quadrinhos. Mas, isto está mudando

Por Paulo Floro

A novela é algo intríseco à cultura pop brasileira. No entanto, sua importância é muitas vezes relativizada, com tantos detratores quanto amantes, mas sua presença é inegável: impossível fugir da repercussão de uma trama de sucesso. A HQ Sabor Brasilis, lançada pela editora Zarabatana, leva o tema aos quadrinhos ao contar a história dos bastidores de um folhetim a partir de um grupo de roteiristas.

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Feita a quatro mãos com roteiro de Hector Lima e Pablo Casado e arte de Felipe Cunha e George Schall, o álbum aborda as intrigas e os dramas dos roteiristas, fazendo referência a fatos do mundo real, como a cobertura intensa da mídia e a guerra pela audiência . Tudo começa com uma pergunta básica que já nos acostumamos ver em muitas novelas: “quem matou Olívia Ribeiro”.

“As novelas são a mitologia brasileira moderna, contadas em volta da fogueira da TV”, diz Hector Lima, um dos autores, em entrevista para a Revista O Grito!. Sobre o preconceito que as novelas ainda enfrentam – apesar do sucesso – em uma parte da população, ele faz uma comparação com os quadrinhos. “Quadrinhos sofrem muitas vezes, sendo considerados arte menor por quem faz as outras. Mas isso está mudando conforme vamos nos aceitando mais como brasileiros e nos enxergando menos com vergonha e mais com aceitação e orgulho”.

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A Revista O Grito! entrevistou os autores desta que é uma das primeiras HQs nacionais de 2013.

O GRITO!: A novela é um dos produtos da cultura pop brasileira mais característicos. Mas, sempre foi esquecida pela literatura, cinema, outras artes. Você arriscaria um motivo?
Hector Lima: Não sei dizer com certeza, mas acredito em uma série de fatores. O principal sendo um certo preconceito com a novela como manifestação de cultura de massa – preconceito esse que os próprios quadrinhos sofrem muitas vezes, sendo considerados arte menor por quem faz as outras. Mas isso está mudando conforme vamos nos aceitando mais como brasileiros e nos enxergando menos com vergonha e mais com aceitação e orgulho – sem ser ufanista, e sim com aquele olhar de tiração de sarro de nós mesmos. Essa é pra mim uma das melhores coisas do momento curioso que vivemos no país.

Como surgiu a ideia de fazer a HQ sobre os bastidores de uma novela? Quais foram as ideias para a HQ?
Hector Lima:
O Pablo eu já conhecia da internet (ele me entrevistou pro Universo HQ uma vez e viramos amigos) e com o Felipe já havia feito HQs curtas. Eles me apresentaram ao George. Nós quatro havíamos criado uma parceria e uma amizade por conta do nosso trabalho na coletânea INKSHOT (que vai sair só depois da Sabor) e queríamos um projeto que consolidasse isso. Fizemos uma lista de ideias e discutimos entre nós por um tempo qual seria a mais legal. E a Sabor foi a que mais teve a ver, a que mais apelo popular teve entre a gente, haha. Queríamos falar de algo tipicamente brasileiro que não fosse do folclore antigo – mas do folclore moderno, no sentido de “folk lore” mesmo, de conhecimento popular. As novelas são a mitologia brasileira moderna, contadas em volta da fogueira da TV.

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Avenida Brasil foi um dos maiores sucessos da teledramaturgia nos últimos tempos, mas a HQ já estava sendo feita antes da novela, certo? Teve alguma influência a trama de Nina, Carminha e cia?
Pablo Casado:
Não, na verdade. Quando Avenida Brasil começou o roteiro estava sendo concluído. A novela reverenciada na história, por assim dizer, acabou sendo Vale Tudo, com a personagem Olívia Ribeiro e seu assassinato servindo de homenagem à Odete Roitman e sua morte. Aguinaldo Silva foi outra influência marcante durante o desenvolvimento da história: meses antes da estreia de Fina Estampa, sua presença nas redes sociais havia nos chamado a atenção, e quando da produção do roteiro, a personalidade do Antonio Callado, o autor de Sabor Brasilis, foi inspirada em parte na do Aguinaldo.

Porque uma novela faz tanto sucesso? Vocês devem ter refletido sobre isso ao escrever a história.
Pablo Casado:
Sim, com certeza. Mas duvido que tenhamos chegado a um consenso. O que concordamos foi no fato de que a novela é algo tão nosso quanto o samba ou o futebol – e que são coisas de fora as quais nos apropriamos e demos a nossa cara, o nosso ‘jeitinho’. São pouco mais de 60 anos no ar, em diversas emissoras, renovando-se de maneira meio torta, desordenada, mas que não sai da boca do povo. E talvez um dos principais motivos do seu sucesso até hoje seja este: falar de coisas que refletem o que está acontecendo com o brasileiro.

strong>Qual foi a principal referência nos desenhos para fazer a HQ? E como unir estilos diferentes de mais de uma autor na obra?
George Schall: Para HQs de cotidiano (ou Slice of life) como é a Sabor, eu busco referências em artistas do gênero cujos estilos se assemelhem aos meus, mas que tenham trabalhos mais autorais com as mesmas características, como Ryan Kelly (NY Five, Local), Chris Bachallo (nos títulos The Witching Hour e Death:The High Cost of Living) e Becky Cloonan (DEMO/DEMO v2, American Virgin). Eu estava lendo Eisner enquanto desenhava a Sabor Brasilis, e acho que isso resultou em algumas páginas com diagramação mais fora do comum ali no meio.

Felipe Cunha: Acho que a referência mais recorrente pra mim foi o Jaime Hernandez, eu tenho a coleção “Flies on the Ceiling” da série Love and Rockets e constantemente me via folheando o livro em busca ou de referência visual ou de inspiração, o sucesso pra ambos os casos era infalível. Sabor tem muitas sequências de diálogos entre os personagens, então é necessário investir na expressão corporal e na facial de cada personagem pra que as cenas não fiquem monótonas, nesse caso Love and Rockets é uma mina de ouro.

George Schall: A divisão de arte talvez estranhe mesmo ao leitor mais avisado, mas como queríamos utilizar as artes dos dois no decorrer do livro todo, foi necessário um certo planejamento. O Felipe desenha todas as cenas de novela (exceto uma página de personagens secundários que ficou comigo), por exemplo. E a arte muda quando há um corte na cena, nunca no meio dela, que é pra evidenciar a mudança de lugar com a mudança de estilo, causando o mínimo de estranhamento possível.

São Paulo acaba sendo parte importante da história, com cenários que fazem questão de mostrar paisagens da cidade. Isso é algo muito presente em novelas. Foi a intenção?
George Schall:
Foi. Apesar de a gente mostrar um tipo de “Projac” em algumas cenas, o cenário é bem paulistano mesmo. Não rotulamos a cidade em momento algum para não limitar, mas quem mora em São Paulo vai se sentir em casa lendo. E as tomadas de cenários – ou estabilishing shots – são bem novelescas. Talvez seja algo mais interessante para o leitor descobrir sozinho ao longo do livro, mas a ideia é que ele perceba, além das referências mais claras, as semelhanças da linguagem da HQ com a das novelas, que são sutis mas estão lá. Tem isso, e tem o fato de nós morarmos por aqui. Facilita bem mais tirar as referências da memória, para um projeto que trata do cotidiano da vida como a Sabor. Podemos focar mais nas expressões dos personagens e menos no cenário, que sai com facilidade.

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Como telespectadores qual a novela que mais marcou?
Felipe Cunha:
Eu acompanhei várias novelas ao longo da minha vida e acho que nunca daria a mesma resposta a cada vez que perguntassem minha favorita. Uma que se destaca, porém, é A Próxima Vítima que foi o auge do famoso “quem matou” e foi uma comoção gigantesca, nunca vou esquecer o pessoal do bairro fazendo bolão apostando no assassino, foi bem divertido.

Hector Lima: Para mim pessoalmente foi Vale Tudo. Não só pela memória afetiva mas – como se comprovou na reprise do Canal Viva que mobilizou o Twitter – por ter personagens e situações muito marcantes pro nosso imaginário, virou quase um modelo de melodrama. Ali estavam todos os elementos que norteariam muitas outras depois: ascensão das classes mais baixas, dilemas morais envolvendo corrupção e jeitinho brasileiro, desintegração das ricas famílias tradicionais e seus conceitos antiquados – além do charme dos anos 80 pra temperar.

George Schall: Pra mim, acho que foi Mulheres de Areia, pelo lance da Ruth e Raquel, e do Tonho da Lua. Aquilo ficou na minha cabeça desde criança.

Pablo Casado: A Favorita, de longe. Só a inversão da protagonista no meio da novela foi um golpe de mestre do João Emanuel Carneiro.

Novela Vale Tudo serviu de inspiração (Divulgação)
Novela Vale Tudo serviu de inspiração (Divulgação)

As HQs nacionais tiveram um boom em 2011, mas uma leve queda ano passado. O trabalho de vocês teve apoio do ProAC, mas várias outras obras estão atrasadas. Como vocês analisam o atual momento do mercado nacional?
Hector Lima:
No caso específico do ProaC acho que os atrasos culminaram nas mudanças sofridas pelo edital em 2012, que agora escolhe menos obras, mas dá mais tempo e recursos pras HQs serem produzidas. Parece que todos – autores e Secretaria – perceberam que o modelo anterior não era suficiente na realidade em que vivemos: os quadrinistas brasileiros ainda não vivem só das HQs, infelizmente. E por isso o cronograma pode atrasar, como aconteceu com o nosso. Usamos as extensões necessárias e previstas no edital, e a Secretaria de Cultura do Estado de SP deu todo o apoio. No quadro geral acho que ainda estamos em um momento ótimo que só tende a melhorar – em 2012 tivemos muitas HQs legais bancadas por crowdfunding; outras lançadas no exterior; reconhecimento de gente muito boa que está há anos na correria; surgimento de vários autores legais; sem falar no lançamento do Astronauta – Magnetar, a primeira Graphic MSP, que considero um momento histórico por aproximar o Mauricio de Sousa do que é feito nos Quadrinhos europeus e da Marvel. Ainda se tem muito o que produzir e evoluir por aqui, mas nunca tivemos tanta coisa boa feita por brasileiros.

O trabalho de divulgação de quadrinhos ainda é difícil? Como vocês fazem para conseguir espaço na mídia, destaque nas livrarias, digo, existe uma estratégia para isso? Em relação aos lançamentos, eles basicamente se resumem a São Paulo ou há planos para ir a outras cidades?
Hector Lima:
Depois de publicar a segunda coisa mais difícil é divulgar as HQs. Tem que ter cara de pau. Além de não estarmos em um país com grandes hábitos de leitura (apesar de isso estar melhorando), quadrinhos ainda são vistos apenas como coisa de criança. Sabor Brasilis, por exemplo, é uma HQ adulta, mesmo podendo ser lida por adolescentes espertos. E na verdade pode ser lida por qualquer pessoa que ama ou odeia novelas. O assunto é uma certa vantagem que estamos tentando explorar na divulgação. Nossa fanpage  tem posts temáticos, críticos de TV de mídia impressa, eletrônica e digital têm recebido o álbum – queremos ver se conseguimos até mandar um para o autor de novelas Aguinaldo Silva. Vamos lançar oficialmente dia 23 em São Paulo na Gibiteria e seria lindo fazer uma tarde de autógrafos por mês, ainda que seja difícil estarem os quatro autores juntos. Talvez role uma em Maceió, onde mora o Pablo, e em Santos, minha terra-natal. E estaremos com um espaço no FIQ 2013, que promete ser um evento incrível.

Todos vocês já trabalham em novos projetos. Contem por aqui
Hector Lima
: A coletânea INKSHOT – o Chinese Democracy da HQ Nacional – vai finalmente sair em 2013, depois de muitas idas e vindas, impresso no Brasil por uma editora e digital nos EUA por um selo muito legal. Mais detalhes quando a tinta nos contratos tiver secado. Tenho roteiros pra HQs curtas em desenvolvimento além de um da minissérie de crime Macaco-Rei e um longo de suspense e mistério chamado (por hora) Um Homem Prevenido, pro qual de repente vou arriscar um financiamento coletivo.

George Schall: Atualmente estou trabalhando em um projeto meu com a editora Dark Horse. Infelizmente, por questões contratuais, não posso entrar em muitos detalhes do que está por vir.

Pablo Casado: Tenho algumas ideias de roteiro que, gradativamente, vão dando continuidade. Mas o projeto que está pegando agora é uma ficção científica que o Felipe vai desenhar, que mistura música funk dos anos 1970, modificação genética e outras loucuras.

Felipe Cunha: Prioridade por enquanto é esse projeto com o Pablo, que vamos divulgar detalhes próximo ao lançamento oficial da Sabor Brasilis, devo também retomar o “Schematics”, webcomic que fiz com o George ano passado e que deve ganhar uma nova cara. E tenho conversado também com o Rodrigo Alonso, velho amigo e parceiro da época de fanzines, ele tem milhões de ideias novas que devemos tocar assim que possível.

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