Entrevistar a cantora, compositora e pianista Angela Ro Ro não é fácil. Além de inteligente e sagaz, são 45 anos de carreira, com muitas histórias para contar, tanto que futuramente um documentário e uma biografia estão a caminho. Mas se a preguiça deixar, avisa a artista, sempre esbanjando bom humor.
Aos 74 anos, Angela continua ativa nos palcos brasileiros, com uma agenda de shows onde canta seus grandes sucessos, mesclando MPB, jazz, rock e blues.
Nesta entrevista descontraída concedida por telefone à Revista O Grito!, ela fala sobre os mais diversos assuntos.
Você tem realizado muitos shows nos últimos tempos, um deles, esgotou rapidamente em São Paulo, como você define seu momento atual?
Eu tô bem, graças a Deus, tanto a Angela Maria Diniz como Angela Ro Ro. Graças à vida, ao meu cuidado com a minha saúde, porque com a idade obviamente você fica um pouco mais frágil, mas a minha fragilidade é forte; tenho bastante amor à vida, então tá tudo legal. Estou trabalhando, pessoal tá gostando. Na vida pessoal também tô tranquila, eu fico entre Saquarema (município da Região dos Lagos no Rio de Janeiro) e o Rio.
Por falar em shows e música, no início dos anos 1980, uma canção sua foi censurada, você se recorda do motivo?
Sofri censura, boicote, não sei se foi por ser lésbica, mas a música era “Isso é para Dor”, e a palavra ‘galinha’ foi censurada. Naquela época era um absurdo, as pessoas censuravam qualquer coisa, mais para censurar o artista do que a música; do que a arte; era uma coisa contra o artista. Apesar de eu não ser filiada a nenhum partido contrário, nunca fui militante, nunca fui guerrilheira (fala em espanhol), forasteira, mas eles chegaram ao ponto de implicar com a palavra ‘galinha’.
Aliás, você sofreu não apenas censura, como inclusive agressões físicas na época, quando o país ainda vivia um regime.
A coisa foi braba. Em 1984, fui espancada quase até a morte saindo de um restaurante com duas amigas; elas conseguiram fugir porque não tinha jeito de me socorrer. Um dos caras tentou abrir a porta do banheiro em que eu estava, e tentou me currar no banheiro do restaurante, que era fora da casa [estabelecimento]. Eles se identificaram como milícia – a milícia de Mangaratiba [RJ], a atual milícia Barra da Tijuca, Recreio. Eu saí daquilo lá dizendo: ‘Cara, o que é isso?’. Fui em direção ao meu carro, eram três e juntaram para me espancar, um pegou uma barra de ferro na mala do carro dele; fiquei apavorada, só pensei “o que papai vai gastar de hospital e de operação plástica”.
Inacreditavelmente não tive nenhuma fratura, não deformou meu rosto; mas ele deu duas barradas de ferro e eu estava tentando correr deles, em vão. Tentei fugir, estava usando salto alto, e naquela rua cheia de pedras, o salto entrava entre as pedras; e eu angustiada, ele veio por trás, e deu com a barra de ferro na minha cabeça por trás do olho direito e depois deu a segunda. Houve um pequeno afundamento craniano, mas não houve inacreditavelmente nenhum traumatismo craniano, mas perdi a visão do olho direito.
E a polícia militar, também com o pretexto de me currar, me levaram num camburão para o Instituto Médico Legal ali no centro da cidade [RJ], e me torturaram. Um deles queria me currar. Eu não entendo isso “pega, mata ou come”, o que eles querem fazer né? Estuprar ou matar? O humor tem que ser eterno na minha cabeça. E ele pegou duas chapas de Raio-X de metal, e me fez uma tortura chamada ‘telefone’, eles batem em ambas as orelhas, várias vezes, o sangue escorreu muito grosso pelo ouvido esquerdo, e eu tenho essa deficiência auditiva desse ouvido. Mas inacreditavelmente com muita fé vou em frente e consigo fazer shows, consigo ouvir o que canto, ouvir o que tocam, mas foi barra.
Só nessa de 1984, fiquei 11 dias no hospital, mas vamos levando, porque fiz três cirurgias maravilhosas no olho direito e não perdi o olho, que seria mais amargo né? Seria bastante cruel, mas o olho tá aqui, ele olha para o ladinho, olha para o outro, ele é o neném pequeno, o irmãozinho; ele não enxerga, mas está vivo. E olha Mercedes Sosa ‘Gracias A la Vida’ que tem me dado tanto’, porque me deram muito sofrimento, mas vindo de pessoas horrorosas que só tem coisa ruim pra dar; e a vida em compensação me dá muita alegria, me dá muita felicidade.
Você tem uma extensa carreira e muitas histórias, teremos uma biografia em breve?
Sou de uma preguiça absurda, vou começar a ditar para um amigo, que ele é muito rápido, vou fazer esse livrinho humildemente por telefone. Vou falar com ele essa semana, pra ver se tenho tempo pra gente ir fazendo. Farei cronologicamente, com as coisas que me lembro que são muitas; as coisas mais importantes que atingiram o meu sentimento; coisas desde criança, desde neném, pais, avós, minha tia agregada que não era tia de verdade, era uma amiga de mamãe, e as coisas que foram as mais importantes em minha vida.
A pandemia foi um período muito difícil para você, considera que foi o pior momento de sua vida?
A pandemia foi dose. Foi dose para qualquer um. Para artista então, que não tinha home office…, Mas quando vi que a caderneta de poupança, carnê, cadê, etc, aí entrei em desespero. Jesus meu, não posso vender a casa que estou morando, que nem é minha ainda, tá no inventário; fiquei apavorada, porque tinha uma empregada de algum tempo que estava com duas cirurgias para fazer, e não poderia deixá-la na mão, de jeito nenhum; meu caseiro, condomínio, IPTU, comer, vitamina, algum remédio para a pressão arterial para ela não subir o Everest.
Fiz absolutamente do jeito que sou, sem a menor vergonha na cara, fiz um post, com os meus dados bancários, e pedi em público qualquer doação; disse na época ‘quem puder botar uns dez realzinho na minha conta por favor, enquanto eu seguro essa loucura’; e esperando gentilmente e obviamente daquele desgoverno passado uma atitude em prol a vida humana, o que não houve. Demorou muito a vacina; demorou tudo; foram muitas mortes. Então dificuldade econômica é sério, mas o que aconteceu com a vida humana foi muito mais sério ainda. E enquanto isso houve bastantes doações; consegui dar as duas cirurgias de emergência para minha empregada (e amiga antes de mais nada). Consegui não ter dívida trabalhista; e consegui ficar sem dívida; até que a minha produtora Maria Braga, uma amiga e tanto, logo após a pandemia, conseguiu me arranjar a cultura, Amigos das Artes, SESC, aquelas lives, e comecei a fazer as lives da sala da minha casa em Saquarema [RJ].
Aí comecei a ganhar um cachê ali, outro lá, e vamos levando, sem dívidas, pagando as minhas contas em dia, e tentando trabalhar ao máximo para que não falte nada a mim e a ninguém. E eu agradeço imensamente todos os dias a cada pessoa que botou um tostãozinho na minha conta, que sejam felizes, que tenham saúde, prosperidade, e muito amor, agradeço mesmo de coração.
Certa vez, ao ser indagada sobre ser lésbica ainda no início dos anos 1980, você deu uma resposta muito semelhante ao da Elke Maravilha dada anos depois. Na ocasião você disse “Já pensou se todo mundo parir, já não há comida que dê, imagine com mais consumidores”. Nunca quis ser mãe?
Meu Deus, sempre achei a Elke maravilhosa, é uma bússola para o rumo das pessoas loucas de sanidade, loucas de lucidez, e eu já falei muita coisa maluca né, algumas coisas engraçadas que as pessoas podem até levar a mal (risos). Nada contra nenéns nascendo, deixo bem claro, mas nunca cogitei, nunca tive a menor vontade de ser mãe fisiologicamente, especialmente porque não transo com homem. Nunca transei com um homem, é inacreditável né? Mas nunca transei com um homem. E pra fazer in vitro ou alguma outra coisa artificial, nunca me deu vontade de ter neném na minha barriga, nem de parir. Mas sou filha de Oxum, e sou assim muito mãezona, sou mãe de tudo, qualquer coisa já me inspira um sentido fraterno e maternal. Sou assim… mãe de espírito.
Você nasceu em uma família de classe média de Ipanema, quais são suas recordações de infância?
Meus pais estavam morando numa casa de cômodo em Vila Isabel [bairro da zona norte carioca]. Hoje é um bairro nobre, mas na época não era, era um bairro pobre. Tem uma coisa engraçada: apesar dos meus pais não gostarem de jogos, meu padrinho gostava muito de jóquei; perdeu vários bens com essa coisa de jogar, é sempre perigoso. Mas um dia mamãe, que já estava grávida de mim, falou: ‘Vamos ao jóquei com fulano?’. Ela achava tudo chique.
Eu ia nascer numa casa de cômodo sem sequer banheiro, era um treco lá comunitário; sem nenhum conforto quase, mas pelo menos um teto né. Meu pai era policial civil, apesar de não ser violento e nem gostar de armas; ele era também engenheiro civil, tinha esses dois empregos, e como engenheiro, ele estava com um bolo de dinheiro para pagar a semana dos obreiros; e você imagina que a mamãe temperamental, Conceição, maravilhosa, cismou que tinha que jogar nos cavalos e viu dois números que ela queria; aí chegou até papai e disse ‘eu vou jogar’.
A mamãe enfiou a mão no bolso das calças do meu pai, ele ficou apavorado e falou: ‘Minha filha é o dinheiro pra pagar a obra de uma semana, os obreiros, pelo amor de Deus, o que você vai fazer?’. Ela disse: ‘Não importa, vou porque tive uma intuição e eu vou’. Ela cismava que eu ia nascer menino: George Eduardo, aquelas coisas. Enfim, aí ela: ‘Eu estou oferecendo meu filho a São Jorge e eu tô com essa intuição de jogar nas patas dos cavalos a nossa sorte de melhorar um pouco de vida porque você é um homem esforçado e nosso filho merece’.
Pegou todo o dinheiro do papai, foi para o guichê e escolheu dois números, dois cavalos. Ela falou: ‘Quero botar tudo nesses dois cavalos’. Aí um homem falou assim: ‘A senhora não tem assim experiência, não são boas escolhas suas, são dois pangarés, minha querida. Isso daí nem sai da coxia’. ‘Mas são os números que no jogo do bicho simbolizam o cavalo’, aí mamãe doida, maravilhosa, insistiu e jogou. E ele falou assim: ‘Olha, a senhora está jogando de uma forma bem perigosa, vou explicar de novo, a senhora jogará em dois cavalos de uma vez só, todo o seu dinheiro é um placê bom’. Gente vocês não acreditam. Os favoritos, os maravilhosos, os campeões, tadinhos; dois tiveram cólica, um ficou também dodói, não saiu da coxia. Outro teve, um pânico, tanto o jóquei quanto o animal tiveram pânico, e os dois pangarés ganharam em placê.
Os dois cavalos que eram tidos como perdedores ganharam. Bom, adeus, casa de cômodo e bom dia a um apartamento que ao menos tinha dois quartos bons, dependência de empregada, tinha dois banheiros, um de serviço, o outro completo, tinha lugar pra botar a vovó, lugar pra tudo, bercinho meu; e como era de fundos e não tinha prédio na Avenida Vieira Souto na orla de Ipanema, a gente via o Atlântico desde lá do Pão de Açúcar, desde lá depois do Leme, Arpoador até o Costa Brava que é uma parte da Barra da Tijuca. Um horizonte maravilhoso na janela da sala, uma sala ampla. A mamãe maravilhosa e completamente desprovida de controle conseguiu por uma intuição feminina e com outra fêmea na barriga, acho que é a intuição foi forte. Então isso foi uma coisa muito bacana.
E por falar em intuição feminina, você sempre soube que gostava de mulheres?
Já sabia que gostava de mulher desde os seis anos, por causa das vedetes: Nélia Paula, Virginia Lane e as mulheres do Carlos Machado, do Walter Pinto, do Teatro Rebolado, do Teatro Recreio; que mamãe uma vez ou outra ia e eu via fotos no jornal e via na TV Tupi ali. Era fã da Virgínia Lane, ela tinha dois programas, um infantil que eu não assistia, passava à tarde e tinha uma vez por semana espetáculos Tonelux; esse era de adulto e minha mãe deixava eu ficar um pouco mais tarde acordada porque ela sabia que eu adorava a Virgínia Lane.
Nos anos 1990, você estava acima do peso, porém deixou todos os hábitos nocivos de lado, e iniciou uma dieta rigorosa, como foi esse processo de emagrecimento?
Consegui sem a cirurgia bariátrica, que é bem-vinda em muitos dos casos, né. Eu estava pesando mais de 130 kg; estava pesando quase 140 kg. Mas perdi de pouquinho em pouquinho, caminhando no playground do edifício, caminhando um pouquinho pelo passeio da saída de garagem da casa de Saquarema, porque tudo era muito difícil no início. Aí depois já comecei a andar mais, mais rápido, aí comecei obviamente fazer uma dieta, isso é claro né? Dieta de tudo que é veneno e dieta também nutricional. Comecei a utilizar mais verduras, legumes, raízes, arrozes, feijões. Não digo macrobiótica nem vegetarianismo severo. Mas uma alimentação mais sadia e de repente eu já estava em cima de uma bicicleta; que chamo sempre as minhas bicicletas de ‘Teresa’, em homenagem ao Jorge Ben Jor: ‘sou Flamengo e tenho uma nega chamada Teresa’ (cantarola ela), aí eu só comprava bicicletas pretas, da cor preta, aí era a minha Teresa.
Aí eu já estava circulando depois dos 50 anos pela Zona Sul inteira; as ciclovias todas, chegava às vezes até a Botafogo. Isso tudo eu saía de casa botando a bicicleta no elevador porque eu dizia: ‘se eu conseguir botar a bicicleta em pé no elevador de quina, eu tô apta a andar na ciclovia’. Não guardava em garagem não. E andava, andava, andava, isso era seis horas, eu já estava aprontando pra sair. Seis e meia, sete horas no máximo estava na rua ‘ciclando’. E fui perdendo peso de uma forma natural durante uns dois anos. Em menos de três anos perdi quase 80 kg.
Agora, eu não posso fazer musculação né? Então não fui a academia, não é que eu despreze, é que eu não posso, tenho problemas desde adolescente de luxações, traumatismos e rupturas parciais dos tendões supra e infra espinhosos. Luxações da clavícula e úmero [maior osso do braço]. E quando o úmero sai vai machucando, vai rompendo tudo. Então não pude fazer musculação. Mas fiquei magrinha e gostosinha. E agora continuo também. Às vezes emagreço um pouco, contanto que seja saudável, tudo bem. Mas estou sempre com um peso maneiro.
Basta dizer que consigo fazer economia em comprar roupa porque compro uma roupa há quinze anos, e continuo usando a mesma, não tenho engordado nem emagrecido demais. Olha, acho que milagre a gente não pode esperar vir do lado de fora. O milagre, a gente tem que ajudar ele e fazê-lo acontecer. Um pouco de força de vontade não custa nada.
Recentemente, tivemos grandes perdas no cenário artístico, como você lida com isso?
É natural que a gente perca pessoas famosas ou apenas seres humanos. A morte é o fim de uma vida física, fisiológica e orgânica. Tem pessoas que a gente realmente fica muito magoado com a ausência deles, mas não fico na paranoia não. Eu não penso sobre a morte; não gosto de velório; não sou uma pessoa mórbida; de jeito nenhum. Sou mais palhaça, penso mais em poesia, coisas bonitas, penso no que tenho que fazer: ‘aí meu Deus já paguei o plano de saúde? Aí tá faltando show’, poxa vida, estou amando, sempre estou amando, seja o que for, estou amando sempre, estou sempre apaixonada pela vida, e quem vive apaixonado pela vida não tem tempo pra morte não.
Você sempre foi namoradeira, prefere morar junto ou separado?
Morar só ou acompanhada, depende, não é uma questão de preferência, mas de prática; e fico entre duas cidades, eu não posso obrigar quem estar comigo a ter dois empregos em duas cidades diferentes, e viver comigo amarrada aos meus pés, então não é questão de preferência, é questão de prática mesmo.
Você se considera uma pessoa nostálgica? Sente saudades de algo em particular do passado? Porque estamos em constante mudança, termos e expressões comuns no passado, hoje possuem outra conotação …
Não me considero nostálgica. Não vivo do passado, mas gosto de lembrar dele muito bem; desde o minuto que acabou de acontecer ao ontem; desde a infância, porque assim vou me autoconhecendo; me resolvendo psicologicamente; sem colecionar traumas, sem colecionar neuras, porque tem aquelas neuras de predileção, né? Não tô a fim de colecionar neuroses. Sim, a sociedade está em constante mudança, mas ‘mudança’ não quer dizer evolução e nem progresso no sentido positivo da palavra. Realmente algumas expressões comuns no passado, hoje podem possuir uma conotação negativa, aí é bom dar uma revisada né, para gente evitar repetir conotações negativas.
Além da autobiografia, algum outro projeto que gostaria de realizar?
O projeto que eu gostaria de realizar é parar com a minha preguiça, e dar início à minha biografia. Logo após ser vitoriosa contra a minha preguiça, de repente quem sabe escrever um livro de poesias, contos ou coisas engraçadas, humor, gosto muito de humor, e quero dar sequência ao filme [documentário] que a Liliane Mutti que mora entre Brasil e Paris; ela já até desistiu de ficar atrás de mim, mas ela deve tá esperando abater a minha preguiça para continuar o projeto, que ela já descolou toda a parte financeira, burocrática. Então, o que falta para eu realizar é deixar de ser preguiçosa e prosseguir com coisas que eu ainda não fiz, e que não só quero, mas devo fazer.
Recentemente, foi o dia da visibilidade lésbica, como você se define em relação a essa data e como se sente perto dos 75?
Me sinto legal, agora final do ano, em 5 de dezembro completo 75; é rapaz, engoli chumbo grosso e tô aqui. Ano passado tive uma anemia, chato pra caramba, fiquei fraca, não gostei não. Sou um ser humano, uma mulher, uma fêmea, e gosto de mulheres, me sinto atraída pela inteligência das mulheres, pela sensibilidade delas, e pelo corpo das mulheres sexualmente.
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