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Papo com Aline Zouvi, autora da HQ “Pigmento”: “Me motivou a ideia de fazer história com final feliz para pessoas LGBTs”

Em sua primeira HQ longa, a quadrinista brasileira mergulha no universo da tatuagem como mote para falar de amor, autoimagem e visibilidade

Quem acompanha o trabalho de Aline Zouvi há alguns anos sabe que existe em cada quadrinho seu um processo de reflexão sobre diferentes temas, em um mergulho profundo, mesmo nos pequenos zines e coletâneas que participa. E faz isso partindo de uma perspectiva queer, o que torna sua leitura bastante convidativa e acolhedora para um público que por muito tempo nunca se reconheceu nas histórias.

Pigmento, sua primeira HQ longa, que sai pelo selo Quadrinhos da Cia, da Companhia das Letras, vai fundo nessa proposta criativa de Zouvi, sempre muito interessada em compor histórias cheias de nuances, camadas, porém desta vez com uma complexa teia de referências, que vai de Ana Cristina César a Paul B. Preciado, passando, claro, por Alison Bechdel, autora de Fun Home e uma de suas maiores inspirações.

“Foi a primeira vez que eu fiz um quadrinho desse tamanho e a narrativa mais longa que eu tinha feito antes era Síncope, que tinha 64 páginas”, explica Aline Zouvi, em entrevista à Revista O Grito!. Nascida no Rio de Janeiro, Zouvi é autora de Óleo sobre tela (UgraPress), Pão francês (Incompleta, finalista do HQMix e Angelo Agostini), Tradução simultânea (SapataPress) e Não Nasci Sabendo (Selo Harvi), vencedora do prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+.

Pigmento conta a história de Clarice, uma jovem tatuadora que não consegue se tatuar. Na busca por compreender o porque nenhuma tinta se fixa em sua pele, ela acaba conhecendo Lívia, uma restauradora de livros e, desse encontro, acaba surgindo uma história de amor que vai mudar a vida de ambas.

Repleto de simbologias e com uma cuidadosa teia de referências que se conectam à história, Pigmento faz uma imersão no universo da tatuagem a partir de sua estética e história. É um mote para também falar de permanência, mudança, transformações, mas também autoconhecimento e identidade.

“Eu quis tentar fazer um exercício de criação de camadas de sentido para a história, de forma que a interação entre essas camadas pudessem gerar leituras diferentes e pudessem enriquecer a leitura”, explica Aline. “Quem me inspirou muito em relação a isso foi a Alison Bechdel. Eu quis construir essas conexões entre tatuagem e saúde mental, tatuagem e autoimagem. A percepção que você tem do seu corpo e como ela é alterada e muitas vezes melhorada através da tatuagem”.

Leia nossa papo na íntegra com Aline Zouvi:

O Grito!: Quem acompanha seu trabalho há tempos (como eu) já aguardava esse livro há algum tempo. Qual a sensação de vê-lo finalmente ganhar o mundo?

Aline Zouvi: Foram uns cinco anos para terminar o livro. Realmente foi um exercício de paciência para mim, tanto pela pandemia, mas também pelo processo em si, que é demorado, né? Foi a primeira vez que eu fiz um quadrinho desse tamanho e a narrativa mais longa que eu tinha feito antes era Síncope, que tinha 64 páginas, então, foi complicado. E aí ver esse livro finalmente impresso, publicado, lançado, é uma alegria imensa pra mim. Eu me sinto muito realizada e considero isso uma vitória coletiva também pra quadrinistas mulheres, brasileiras. Eu acho que quanto mais mulheres em editoras grandes, melhor.

Vamos pelo começo: como surgiu a inspiração da história deste primeiro quadrinho longo? Como você sabia que era essa a história que você queria contar?

Até chegar na ideia de Pigmento foi um processo. Eu comecei a conversar com o Emílio Fraia, o editor do selo Quadrinhos na Companhia, da Companhia das Letras, lá em 2018, e ele pediu para eu apresentar algumas ideias que pudessem se tornar narrativas. E o que eu mostrei no começo não tinha nada a ver com tatuagem. Pelo menos não de forma tão direta assim. E as ideias que eu trouxe naquela época não tinham muito um formato de narrativa, então a gente ficou em contato, conversando. Ainda levou um tempo pra chegar no formato que o Pigmento ficou no final.

Então só em 2019, depois de algumas reformulações, eu pensei nessa ideia de uma tatuadora que não conseguia ser tatuada, porque a narrativa tinha que ter um conflito, né? Um conflito que fosse minimamente interessante para o leitor. E para mim, essa impossibilidade dela se tatuar pareceu interessante para desenvolver a personagem, a profundidade da personagem, pensando num lado mais psicológico. Se a tatuagem representava tanto de quem ela é no mundo, a profissão dela, a vida dela, o fato de não conseguir manter isso na própria pele é muito significativo. Então foi isso que me interessou a levar adiante a história, e enquanto conflito o editor aprovou também. Aí a gente seguiu com o livro depois disso.

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Pigmento é a primeira HQ longa de Aline Zouvi. (Foto: Luiza Sigulem/Divulgação.)

No livro, a personagem Clarice está em uma jornada de autodescoberta. Na verdade, uma busca por entender algo inusitado (sua pele não conseguir ser tatuada). Mas é uma personagem tão cheia de camadas. Pode nos contar como foi esse processo de dar vida a ela?

Eu acho um dos maiores desafios criar personagens com uma boa tridimensionalidade, com uma profundidade interessante para a narrativa. E a Clarice foi o maior exercício que eu fiz até o momento. O processo de criá-la começou por essa questão da profissão, de uma frustração muito grande, de como alguém que não consegue ser plenamente ela mesma, digamos assim. Mas eu tentei criar essas camadas aos poucos, fazendo registros, estudando. Antes de fazer Pigmento, eu estudei alguns manuais de roteiro e criei um mapa da personagem para mim, mesmo que nem todas as informações fossem aparecer na história.

Para Clarice e para Livia, que é uma outra personagem importante para narrativa, eu quis fazer como se fosse uma ficha de construção de personagem. Quis tentar pensar como tinha sido a infância delas, gostos que elas têm e que podem influenciar na personalidade delas, mesmo que isso não apareça de forma tão direta. E esse tipo de exercício me ajudou a não criar personagens tão superficiais.

Eu quis que a tatuagem fosse esse centro que guiasse as histórias, que guiasse os temas do livro, que de alguma forma eles tivessem conectados, mas com outras camadas de sentido

Aline Zouvi

A tatuagem abre margem para refletir sobre vários temas, como a permanência, símbolos, corpo. E Pigmento é muito entrecortado por esse componente histórico, que nos leva a diferentes momentos. Conta um pouco sobre a composição desse roteiro?

Eu quis tentar fazer um exercício de criação de camadas de sentido para a história, de forma que a interação entre essas camadas pudessem gerar leituras diferentes e pudessem enriquecer a leitura. Quem me inspirou muito em relação a isso foi a Alison Bechdel. Eu tentei fazer algo parecido. O universo da tatuagem ligado ao estudo de símbolos pelo Jung e pela Nise da Silveira, por exemplo. Eu quis construir essas conexões entre tatuagem e saúde mental, tatuagem e autoimagem.

A percepção que você tem do seu corpo e como ela é alterada e muitas vezes melhorada através da tatuagem, né? E o que a dificuldade para fazer isso influencia na mentalidade da Clarice, por exemplo, de que forma a própria tatuagem a fez encontrar a Tereza e a neta dela, a Lívia. Então, eu quis que a tatuagem fosse esse centro que guiasse as histórias, que guiasse os temas do livro, que de alguma forma eles tivessem conectados, mas com outras camadas de sentido.

E com isso eu quis jogar um pouco entre o que é ficção e o que é histórico. A mãe da Tereza, que seria a bisavó da Lívia, conheceu a Nise da Silveira, por exemplo. Tentei juntar essa camada pessoal das personagens com um pouco de não-ficção.

Aline Zouvi.
A HQ é repleta de referências, como a Biblioteca Ana Cristina César, em homenagem à famosa poeta brasileira. (Divulgação).

A HQ é repleta de referências a artistas, obras emblemáticas, personalidades, seja como parte integrante do cenário ou como homenagem (como o estúdio Maud Tatto e a Biblioteca Ana Cristina César). Como foi montar essa coleção de referências e qual a importância delas nesse quadrinho?

Eu quis montar essa coleção de referências também muito influenciada pela Bechdel. Essa ideia de construção de novas camadas narrativas de uma maneira que não se precise conhecer todas as referências para entender a história, mas que elas possam acrescentar outros significados, seja fazendo parte do cenário ou da narrativa como um todo. No processo de montar essa coleção tentei fazer uma documentação, montar um certo repertório que me interessasse. Construí com essa ideia de que uma HQ, assim como qualquer outra obra, em teoria, é um registro da época em que ela foi publicada. Então eu achei interessante dar espaço para algumas obras, mesmo que fosse algo bem pontual. Essas referências, para mim, são importantes no quadrinho, enquanto documento da sua própria época, né? E também por essa questão da visibilidade, de mostrar uma rede de autores que não devem ser esquecidos, principalmente mulheres e pessoas LGBT.

É muito difícil separar completamente a história da nossa vivência, mesmo para obras de ficção. Então, com certeza a questão da tatuagem é algo muito pessoal pra mim. Até o fato das personagens serem sáficas, pois é algo que me interessa dar visibilidade a essas personagens.

Aline Zouvi

Me conta um pouco sobre sua relação com o universo da tatuagem e sua aproximação para criar esse quadrinho.

Eu gosto bastante de tatuagem. Eu demorei um pouco pra fazer minha primeira, eu tinha 20 anos, se não me engano, 20 ou 22. Mas depois perdi um pouco do medo. E é algo que me interessa enquanto parte de um universo que ainda é considerado alternativo, underground, ainda é associado a grupos sociais que podemos chamar de minoritários, que ainda sofrem um certo preconceito, por mais que tenha melhorado bastante. E é um universo muito visual, então me interessou representar esse em quadrinhos porque eu não tinha, até então, visto muitas produções em quadrinhos que tivessem a ver com tatuagem. Só a HQ do André Diniz, que saiu pela Darkside (T.A.T.T.O.O – À Flor da Pele).

A tatuagem tem a ver com minorias de certa forma, pelo menos no começo dela, e depois foi virando algo da classe média também, foi passando para outros grupos sociais. Esse caráter de exclusão social, se posso chamar assim, me interessa. Com alguns trabalhos meus de quadrinhos, eu me interesso em trazer visibilidade para minorias.

Conta um pouco sobre o seu processo de criação? Você curte o processo analógico ou já cria direto no digital? Precisou adaptar o seu processo para este livro?

Eu gosto bastante de produzir tudo no papel mesmo, desenhar no papel com nanquim. E por mais que demore, eu gosto mais do resultado. Então 99% de Pigmento eu desenhei no papel mesmo e corrigi praticamente tudo no digital. Mas só deixei a parte de correções mesmo, algumas mudanças de letreiramento pro digital. Não cheguei a adaptar muitos processos, eu acho. Talvez mais pro final, eu tive que fazer mais coisas no digital, mas só em fase de correções finais mesmo.

Mas para fazer quadrinhos eu gosto muito de deixar tudo documentado, gosto de ter um caderno para cada projeto, se possível, onde eu vou anotar tudo que eu pesquisar, tudo que eu quiser, escrever sobre as personagens, sobre ideias de roteiro, e também diário de produção. Eu gosto de escrever sobre como eu estou me sentindo no momento que eu estou produzindo tal trabalho. Registrei também mensagens que eu troquei com o editor para que me guiassem na produção do livro, entre outras informações que eu queria ter guardada no papel. Eu sou muito uma pessoa do papel.

Aline Zouvi.

Seus trabalhos anteriores sempre partiram de suas experiências próprias ou foram fruto de suas observações sobre o mundo. Em que medida isso também aparece em Pigmento?

Apesar de Pigmento ser uma obra de ficção, com certeza tem muitos elementos pessoais meus nessa história. É muito difícil separar completamente a história da nossa vivência, mesmo para obras de ficção. Então, com certeza a questão da tatuagem é algo muito pessoal pra mim.

Até o fato das personagens serem sáficas, pois é algo que me interessa dar visibilidade a essas personagens, a essa comunidade nos quadrinhos que eu faço parte. E também quis fazer algo que eu não tinha feito em outras histórias, que é colocar uma personagem idosa, porque eu queria de alguma forma homenagear minha avó, que já é falecida, minha avó materna. E eu me interessei de alguma maneira por essa criação de personagens idosos que não fosse de um jeito pejorativo ou estereotipado. Eu vi isso pela primeira vez no quadrinho A Propriedade da Hutu Modan e isso me inspirou também na hora de fazer a personagem Teresa de Pigmento. Então, muita coisa da história tem a ver com o meu percurso de vida mesmo, por mais que não seja autobiográfico.

Como pessoa LGBTQIA+, me sinto tão acolhido pelos seus livros. Neste não foi diferente. É um sentimento de “precisamos de mais histórias como essa”, que deem conta de diferentes subjetividades de nossa comunidade. Como você percebe seu trabalho dentro do contexto atual dessa produção queer brasileira?

Obrigada, eu fico feliz que você se sinta acolhido porque isso é algo importante pra mim, essa intenção da leitura ser um espaço de acolhimento também, principalmente para pessoas LGBTs. Eu acho que nesse contexto de produção queer brasileira, do qual eu quero fazer parte, é importante essa visibilidade, essa representatividade. E Pigmento eu fiz com essa ideia de ‘faça um livro que você gostaria de ler’, sabe? Então, concordo que a gente precisa, sim, de histórias parecidas com essa.

Algo que me motivou também foi essa ideia de fazer histórias com final feliz para pessoas LGBT, porque hoje em dia é até mais fácil de achar, mas mesmo assim, acho que a gente ainda precisa de mais, quanto mais melhor. Então, eu ainda me vejo buscando essa ideia de querer criar romances que possam parecer meio bobos, mas que eu ainda sinto falta de ver. Romances entre mulheres, em que fica tudo bem, em que nem tudo é perfeito, mas dá pra terminar a leitura com uma sensação de calma, de paz. Então é um tipo de produção que eu quero continuar fazendo.

E mesmo sendo inserida num contexto LGBT, eu quero que essas histórias cheguem ao máximo de público possível, até para uma ideia de conscientização mesmo, de pessoas que não fazem parte da comunidade conviver com outras vivências, de ter esse maior conhecimento de outros mundos mesmo.

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Cena “O Segredo da Força Sobre-Humana”, de Alison Bechdel. A autora norte-americana é uma das inspirações de Zouvi. (Divulgação).

Como começou sua relação com as HQs? Qual a memória mais antiga de querer ser quadrinista?

Acho que o começo, o começo mesmo foi a partir dessa leitura de Mauricio de Sousa, que todo mundo tem. Mas uma história que eu sempre conto é que quando eu tinha 10 anos, a minha mãe comprou pra mim Aline e Seus Dois Namorados, do Adão Iturrusgarai. Ela comprou porque tinha o meu nome, mas na capa tinha a Aline sem roupa com os dois caras na cama (risos). Aí depois ela percebeu, putz, isso não é um quadrinho pra uma menina de 10 anos, né? Só que como ela me proibiu de ler, eu fiquei mais interessada ainda, porque era algo proibido, né? E aí eu lembro desse começo ter sido muito importante pra mim, porque a partir dessa leitura eu fui atrás de outros quadrinhos que na época estavam disponíveis, como os da Laerte, do Glauco, do Angeli.

Na época da faculdade um outro começo importante pra mim foi essa vinda das graphic novels ao Brasil. Isso mudou muito a minha vida. Talvez eu tenha pensado na possibilidade de ser quadrinista nesse momento, mas eu ainda não tinha muita coragem. Eu fiz mestrado sobre a Bechdel, né? Então eu fiquei um certo tempo sem ter muita coragem de desenhar, mas só estudando quadrinhos.

E quando eu terminei o mestrado em 2015, eu pensei, puxa, acho que agora eu quero não só estudar, mas fazer os meus quadrinhos, sabe? Então, talvez de forma mais concreta, acho que essa é a minha primeira memória de querer ser quadrinista. Acho que lá por 2015, 2016 eu estava estudando desenho com Mário Cau em Campinas e em dezembro de 2016 publiquei meu primeiro zine.

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