No final da tarde de uma bem-vinda e ensolarada sexta-feira, véspera de Sábado de Zé Pereira do Carnaval 2024, depois de uma semana de fevereiro em que o clima brincou de sol e chuva, os automóveis que circulam pelo bairro de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, interrompem o silêncio que permeia os apartamentos. Um deles, situado à Avenida Boa Viagem, abriga o maior artista vivo da música pernambucana: Alceu Paiva Valença ou simplesmente Alceu Valença.
Assim que passou pela porta de entrada do apartamento no terceiro andar, a reportagem da Revista O Grito! avistou o artista sentado numa poltrona. Empertigado e altivo como um cacique, Alceu estava de camisa azul, de bermuda de cor clara e boina. Ao redor, Júlio Moura, seu assessor de imprensa há cerca de 15 anos, se encarrega de acompanhar os ponteiros e lembrar a passagem das horas ao loquaz assessorado.
Após o final de outra entrevista, o cantor atende à nossa equipe. Para aproveitar a luz das quatro da tarde, mais propícia à fotografia, a sessão de fotos é feita de imediato pela fotógrafa Yacy Ribeiro. Pede que ela também ouça seus relatos atentamente, é um contador de histórias nato.
Em cada uma de suas respostas, o artista aproveita para contar histórias hilárias, declamar poemas, cantar e/ou imitar alguém, praticamente uma performance. A função de um repórter, nessa hora, é se esforçar para sair da quase irresistível condição de espectador e tentar trazer o entrevistado de volta à questão e, assim, conduzir de alguma forma a entrevista. “Eu era muito tímido, até hoje sou, mas agora menos”, revela.
Essa hiperatividade é notada logo no ínicio da entrevista, quando ele não para de balançar as pernas e a passar as unhas sob o móvel. Esse comportamento de Alceu, hoje aos 77 anos de idade, nascido em 1º de julho de 1946, sob o signo de câncer, foi percebido logo cedo por sua mãe, Dona Adelma, quando residia em São Bento do Una. Em pleno Agreste, o garoto era uma espécie de Tom Sawyer. Assim como o personagem de Mark Twain, sempre estava aprontando alguma travessura e, principalmente, observando e absorvendo a cultura ao redor: os causos acerca de Lampião, os alto-falantes da feira, as quadrilhas juninas, os violeiros, os aboiadores, a literatura de cordel, os familiares que tocavam instrumentos em casa.
A propósito, o seu lado intérprete sempre é algo que fica em segundo plano, quando sua obra é abordada. Com sotaque carregado, voz rascante, ele se tornou um dos mais representativos cantores do Brasil, assim como foram Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga, ambos de maneira completamente diversa. Sabe impor a uma canção sua personalidade, dando ênfase a palavras específicas, pulsando as frases curtas de suas estrofes.
Alceu acaba de lançar um disco de sucessos carnavalescos, intitulado “Bicho, Maluco, Beleza”. Essa faixa-título é uma parceria com a cantora baiana Ivete Sangalo. Em quase cinco décadas de carreira, o artista lançou 44 álbuns, mais de 300 composições, dentre elas dezenas de sucessos. Tropicana, por exemplo, em menos de um ano, vendeu 1,6 milhão de cópias; o disco “Anjo avesso“, que tinha Anunciação, mais de 1,5 milhão; e La belle de jour, 800 mil unidades.
Alguns desses álbuns lhe renderam prêmios e honrarias, como “Amigo da arte” (2014), indicado ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Regional. Com o disco ganhou, em 2015, o “26º Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Cantor Regional“. Por ano, realiza espetáculos de diferentes formatos: para o Carnaval, para o São João, para teatro (“Valencianas“, realizado junto à Orquestra Ouro Preto, com a qual fez shows em Portugal e na França) e para festivais de rock, como o “Psicodália” e o “Rock in Rio“.
Atração da Terça-Feira (13) de Carnaval do Recife 2024, no polo Marco Zero, Alceu Valença fala sobre a folia de momo, parcerias, influências e os bastidores de sua intensa carreira. Confira:
Então, vamos começar pelo Carnaval. Você já abriu o Carnaval de Olinda na quinta-feira passada. Qual a sua expectativa para mais um Carnaval em Pernambuco em 2024, este ano?
O melhor possível. Em Olinda, a participação do povo foi inacreditável. Uma coisa interessante é que na Igreja do Carmo [local onde fica o palco do polo do Carmo do Carnaval da Marim dos Caetés], tinha um padre lá em cima com uns celulares balançando, lá dentro, na igreja mesmo, por meio de uma janela. Foi incrível, com pessoas fantasiadas, muito bom! Olinda é a cidade magia.
Foto: Yacy Ribeiro.
Olinda é sua musa inspiradora, Alceu?
Olinda e Recife. São Bento e Olinda. Claro, São Bento, Olinda e Recife. Morei em Recife com sete anos de idade. Estava morando aqui e saí com 21. Depois comecei a morar em Olinda na década de 1980. Agora, sempre ia muito pra lá. Quando era estudante de Direito, visitava bastante, me encontrava com amigos: Tiago Amorim, Marco Amorim, Marco Cordeiro, com muitos artistas plásticos. Adoro artes plásticas. Então, tinha amigos fantásticos, maravilhosos. Encontrava com José Humberto Batu, um intelectual, um mentor meu, um cara que dava a maior força pra mim para que seguisse o caminho da arte. José Humberto Batu de Olinda, Byll di Olinda: vixe, Maria, que figura maravilhosa!
Tenho muito boas lembranças… E também de coisas atuais que gosto muito. Só que Olinda, atualmente, fica muito complicada para mim, porque, de certa maneira, isso é bom pra economia da terra. Mas, de repente, virou um ponto turístico. Então, vão muitas vans… É o tempo todo na minha porta. E mesmo quando não estou dentro de casa. Os guias dizem que estou dentro de casa. E aí, pede até para os turistas gritarem. “Alceu, cadê você? Eu vim aqui pra te ver!”
Falam também em algo que virou uma reportagem: dizendo que, lá em Olinda, o meu banheiro, lá em cima, foi construído por Byll di Olinda. Ninguém pode me flagrar fazendo as minhas necessidades fisiológicas. Mas tem alguém que passa em cima e filma. Aí, passa com o microfone: “esta é a casa do cantor Alceu Valença. A casa dele tem um banheiro lá em cima, onde ele pode fazer as suas necessidades fisiológicas. E só pode ser visto, se for flagrado se for helicóptero, se for drone”. Pô, espera aí, nem na sala, para fazer as necessidades, pode ter liberdade. Eu tenho o drone lá agora.
Mas agora não é mais só o drone. Agora é o celular. Aí, vem: “Alceu, vem para cá tirar foto!”, me pedem. Às vezes, faço, mas, nem sempre dá, porque, normalmente, vem um grupo de 100 pessoas. Então, não vou viver.
Teve um momento, que eu queria até fazer uma coisa: De repente, chegou um grupo de turistas num ônibus. Antes, um pouquinho, quando eles estavam saltando e eu encontrei com um um pedinte e o cara tinha a perna cortada. E aí, eu estava com o dinheiro, dei para ele e, de repente, veio o grupo de turistas. Então, para tirar foto, eu disse: Olha, só tiro foto com vocês se vocês me derem dinheiro e eu botei para ele. Fiquei parecendo uma estátua e eles iam botando o dinheiro. Era perto do Natal e perguntei primeiro: “vocês votam? Vocês são mais Papai Noel ou Jesus Cristo?”. E eles responderam: “Jesus Cristo!”. Eu falei: “Jesus Cristo tinha a perna dos pobres. Então, agora, está aqui esse rapaz. Vocês só tiram o retrato comigo porque vocês deram o dinheiro para ele!”. Olinda tem essas criações.
Fotos: Yacy Ribeiro.
Vamos entrar no disco novo? Poderia comentar faixa a faixa?
O disco, na minha cabeça, é um roteiro cinematográfico. Como eu estou fazendo o bloco “Bicho Maluco Beleza” há anos em São Paulo, que vem crescendo, e terminou virando uma coisa com trio elétrico e tal. A quantidade de gente é um absurdo. De repente, eu estava me lembrando do bloco, que não é no dia do carnaval. Ele é dias antes. Eu me lembrei que eu estava num trio, vi o carnaval de Pernambuco. Mas, me lembrei da rainha do trio. Quem era? Ela: “Ivete Sangalo”. Daí, o Bicho Maluco Beleza cantei com ela, como se estivesse no trio.
Logo após, saio de lá [São Paulo] e vou para o Rio de Janeiro. Quando chego no Rio, eu me lembrei que Maria Bethânia mora lá. Aí, digo: “Epa, vou convidar Maria Bethânia para cantar a música de ‘Janeiro a Janeiro’”. E é o diálogo que faço com ela: “Pra começar Eu vou te amar o ano inteiro / De janeiro a janeiro Meu amor, sem atropelo / E seguiremos caminhando sobre os dias / Carnaval vem chegando E vamos cair na folia / Apronte a sua fantasia / Que eu afino o meu pandeiro”.
Então, estava no Rio. Observe a história: estava em São Paulo. De lá, fui para o Rio. Em seguida, vim para o Recife. Quando chego no Recife, vou diretamente para Olinda. Quando chego, encontro com Juba, meu filho. Comigo, ele canta “Diabo Louro”, que é uma fantasia de uma mulher vestida de diabo e que encontra o amor da vida dela. É do compositor Jota Michiles. Juba é maravilhoso, tem muita energia, canta pra caramba.
Logo depois, quem foi que encontrei? Mais ou menos ali nos Quatro Cantos, acho Lenine. “Oi, Lenine! Tá vendo? Bom demais, bom demais, bom demais, bom demais mesmo!”. (9:37) Podia dizer até dizer: “Lenine, vamos nessa que esse frevo é bom demais”.
Depois, todo carnaval tem uma briguinha de casais. Depois encontro Elba Ramalho. Mas não é ela. Elba tá fazendo teatro, é cinema! No roteiro cinematográfico do disco, é um cara que encontra a namorada Eles brigaram por causa de uma fofoca: “Caia por cima de mim, meu bem, meu bem / Não fique triste, não chore / Você sabe que eu te amo / por favor, não demore”.
E Elba canta: “Chegou a hora da gente saber / Aquela história, tim-tim por tim-tim”. E ele: “Eu sou louco por você, você é louca por mim”. E ela: “Me dê um beijo na boca, meu anjo querubim”. Essa é uma fantasia que eu inventei. Inclusive, tem no meu que tem no meu disco [na canção “Como Um Anjo Querubim” do disco Forró Lunar (2001)]. Essa figura é uma moça, uma musa, tá?
Ainda estou ali nos Quatro Cantos. De repente, Eduardo Raposo Pica-Pau diz pra mim: “Alceu, o homem da Meia-Noite, aquele que vem vestido de lorde, está chegando!”. E quem é que ia passando? Almério. Chamei ele para cantar comigo.
E, de repente, nesse momento, Sérgio, que é o dono da TV Cricri, aparece e diz: “Olha, o Maracatu está chegando!” O Maracatu, ali, na minha cabeça, estou elucidando todas as influências de onde nós viemos para o nosso Carnaval: temos o Frevo de Rua, que dizem ser inspirado na Marcha Polaca. Já o Frevo de Bloco vem da Marcha Portuguesa, que deu ensejo aos blocos líricos. Os Caboclinhos, que são indígenas. Nesse disco mais recente, estou saudando a África.
Depois, pensando no Carnaval de Pernambuco, posso dar uma voltinha. Então, em Itamaracá, encontro Lia. Com ela, canto a Ciranda. Depois, mergulho no passado com “Luar de Prata”.
De repente, termino essa música e encontro com quem? Geraldo Azevedo. A essa altura, o Carnaval já tinha acabado. “Oi, Geraldinho, como foi o Carnaval?”. Ele diz: “Bicho, foi bom!” Aí, eu digo: “Oh, que coisa boa, não foi? E aí, rapaz, como é que tá? Vai dar um descansozinho agora?”. E ele: Não, eu estou indo para o Rio”. Eu digo: “Então, vamos fazer o Carnaval na Lua?”. Saí de lá, faço o Carnaval na Lua e depois volto para cá. O roteiro está todo feito no disco.
Fale sobre suas influências, você nasceu no interior, lá de São Bento do Una, até a gente chegar na Região Metropolitana do Recife.
São Bento do Uno é a cidade de um Agreste Meridional pernambucano, cuja cultura é, sobretudo, a cultura do Sertão Profundo. Lá, é a terra onde vi, pela primeira vez, com quatro ou cinco anos de idade, a banda de pífano, ouvia os cantadores, cego de feira, o berimbau de feira.
Na Fazenda Riachão, ouvia os aboiadores cantando. O pessoal que tirava leite, que trabalhava, a maioria era parente minha também. Eles cantavam aboios e toadas. São Bento do Uno tem a parte do meu avô paterno, que tocava violão por pauta e que gostava de fazer versos e ele tinha um lado que ele era meio ator, era engraçado.
O vovô Orestes se juntou com tio Lucilo e fizeram uma dupla chamada “Patativa e Azulão”. Eles fizeram um cordel deles. Então, aquela coisa do cordel estava com o meu avô paterno.
O meu avô materno é parente do meu paterno e parente da minha avó materna também. Tudo é parente ali. Os Almeida, por exemplo, tocavam, sarau, na fazenda Riachão: flauta, violão, tinha tudo! Já o meu avô materno, Adalberto, era casado com a minha avó, Zulmira de Almeida. Então, os dois lados eram muito musicais. Meu avô tocava bandolim, tio Nanô tocava violino e a tia Nanô tocava piano.
Na casa de tio Sebastião, as filhas eram Verinha, Mana e Maria Edith, cantavam, faziam um vocal incrível, que era feito por tio Sebastião. Tio Rinaldo e tio Lucilo tocavam violão, mas, na época, eu era pequeno, não podia participar daquilo ali.
Quando eu tinha quatro anos, um cara, Coronel Ludugero, que depois foi um personagem muito famoso aqui da televisão brasileira, era carteiro de São Bento do Una, e inventou um festival no Cine Teatro Rex para crianças, cujo prêmio era maravilhoso: uma caixa de sabonetes. Ele foi no grupo escolar Rodolfo Paiva, que é o meu bisavô e encontrou Tia Ademilda de Almeida Paiva, minha tia.
O Coronel perguntou se era possível encontrar algum menino do colégio que soubesse cantar. Minha tia disse que tinha o filho de Adelma, que é meio doidinho e é capaz dele cantar. Então, me convidaram, minha mãe também e fui para lá. O interessante é que eu cantei uma música de Capiba. Já o outro rapaz que ganhou e cantava muito bem, era bem mais velho que eu. Ele cantou Granada espanhol e foi muito bem.
Delma Valença / Divulgação)
É verdade que seus pais estavam na plateia?
Era, cantei a música em cima de uma cadeira, porque eu não conseguia alcançar o microfone. E na hora veio a premiação, eu estava na coxia, e o outro é que foi premiado. Eu me lembro muito dos meus pais. A plateia estava cheia, claro, do teatro, do cinema. Tio Geraldo, que era um poeta muito bom, estava na coxia, não sei se ele tinha bebido um goró. Quando chamaram o menino para poder receber o prêmio, meu tio me empurrou, entrei no palco, dei uma cambalhota e o público aplaudiu. Sem entender nada, eu via luzes da ribalta, achei aquilo tão bonito. Lembro do povo me aplaudindo e mamãe rindo muito.
Depois vocês saíram de São Bento e foram para Garanhuns?
Garanhuns é uma maravilha, agora eu tenho uma lembrança. Meu pai passou em um concurso de promotor, que aliás é engraçado, ele passou em primeiro lugar, mas quem lia para ele era mamãe. Eles eram primos. Mamãe ficava lendo e me lembro do som da rede de papai. Se dizia “Décio passou em primeiro lugar”. Aí mamãe fala: “E eu também”. [risos].
Então, papai vai para Garanhuns, cidade que ele escolheu para ser promotor para quê? Para a gente poder estudar. Meu irmão Aécio já estava na época de entrar no ginasial. Garanhuns é maravilhosa, eu gosto do clima frio. Me lembro de tudo: da casa que a gente foi, que a gente morou, lembro que uma delas tinha um porão, que eu tinha um medo arretado de lá.
Anos e anos, a minha mãe adoeceu com água na pleura e voltou para São Bento. Aí veio uma tia, Judite, que depois fiz uma música para ela só pelo nome dela: “Judite, me fite, Judite / E veja o que sobrou de mim / Um tolo tão triste, Judite / e um resto de samba, sim / Judite, eu adoro você / Vem, já não suporto a separação, sou um navio e não aporto, não / do cais do porto de outra mulher / Vem, vem enfeitar essa minha canção, não tem mais tanto, meu violão, de cantar triste por você / Judite”.
Estou fazendo essa música, pensando em tia Judite, e tio Rinaldo que tocava violão. A casa tinha um porão e aí eu fiz uma música depois, mas nunca gravei, que é, “Minha casa”, no caso, de Augusto Calheiros, eu quase quase cantando com ele: “Minha casa tinha um porão / que mamãe estava doente / e no porão, mil segredos/ E nos segredos, meus medos / Ponto de interrogação / Seria eterna a ausência, da minha primal / na minha, na minha primal cidade / (que é mamãe) e Garanhuns se encerra, numa palavra saudade.
Então, de Garanhuns tenho influência de Augusto Calheiros. Depois, perto da Praça Dom Moura. Eu ia ver o trem todo dia, que chegavam o trem do Recife. Eu estudava no colégio Diocesano e para ir, precisava passar pela praça. Quando passava por lá, via aquela estátua estática. Eu era pequeno, subia, metia o dedo no olho dele de brincadeira. Em Garanhuns, estudei no Colégio Diocesano do padre Adelmar da Mota Valença. Eu fugia muito também: ia para o Parque Pau Pombo, pequeno, aos cinco, seis anos.
O que foi mais marcante de Olinda na sua infância?
Olinda, eu me lembro de uma sorveteria que era na esquina, na Rua do Sol. Um dia, fomos passear para conhecer o Sítio Histórico, que eu não sabia o nome era esse. Fomos eu e meus irmãos Delminha, Decinho e Aécio, meu irmão. Chegamos no Mosteiro de São Bento e alguém disse assim, de brincadeira: “Os sinos de Olinda são de ouro”. Depois, o que aconteceu? Fiz uma música chamada “Sino de Ouro”. Não foi na época do Carnaval, mas aquilo me bateu na minha cabeça. Quando estava lá, bateu na minha cabeça as ladeiras de Olinda, a vista do Alto da Sé, porque em São Bento não tinha nada que fosse alto assim e nem em Garanhuns. Então, quando olho dali da Sé, que coisa maravilhosa! Me marcou a cidade de uma maneira inacreditável!
E depois você foi morar no Recife?
Depois papai foi transferido e vim embora para cá. Eu mamãe, graças a Deus, ficou boa. Fomos morar na Rua dos Palmares, no bairro de Santo Amaro. É uma rua que depois passou a homenagear Nelson Ferreira. Ele morava na frente lá de casa, mais a 50 metros mais ou menos. Aliás, tinha um busto dele e depois tiraram. Ele era casado com Dona Olga. Era uma rua como era uma coisa muito familiar, todo mundo era amigo ali. A rua era muito bacana, foi incrível para mim. E tinha essa coisa que eu coloquei num poema que eu escrevi, chamada de rua Carnavalódroma. Está no meu livro “O Poeta da Madrugada”. Eu ficava, tinha um jardinzinho lá em casa e ficava ali sentado, sentado, olhando os blocos passarem. Marcou total essa história dos blocos: caboclinhos, maracatus, frevos…
Outro cara maravilhoso, Capiba. Eu via muito, inclusive, depois gravei até um disco com ele. Eu era muito tímido com relação à música, até hoje sou, mas agora menos. Raphael Rabelo [músico e violinista] chegou pra poder gravar e fui na hora. Ele queria que eu gravasse Igarassu e fiquei com medo de eu atravessar, que era uma história que vinha na minha cabeça: é um trauma de infância.
Quando era menino, num saraus, na fazenda Riachão, o meu avô, estava tocando com o povo. Tinha por lá um pandeiro. Eu tinha uns quatro anos e dei umas batidas nele. Foi fora do tempo. Meu avô notou e falou: “Tira o filho de Décio daqui porque ele não tem compasso!”. Puta que pariu! Aquilo me deixou o tempo todo pensando que eu não tinha ritmo.
Quando Rafael Rabelo me convidou para cantar com ele, disse que não tinha compasso não. Ele me acalmou, disse que eu tinha ritmo. Orientou que não se incomodasse: “Eu vou reger a orquestra e lhe acompanho”. Assim, consegui cantar. E depois fui pro Maracanãzinho, no Rio, no Festival Internacional da Canção. Lá, fui desclassificado, mas tudo bem.
Mas aquela história ficou na minha cabeça. Quando o Rafael, o Rabelo, me chamou pra cantar com ele “Igarassu”, fiquei com medo de errar. Ele disse a mesma coisa: “Não se incomode não. Você começa e eu vou atrás”. Às vezes, tenho medo até de chamar alguém e, por exemplo, ser um profissional que toque pra caramba, pois tenho muito medo de eu atravessar, o trauma de lá.
E seu pai era contra você ser artista?
Nesse período da juventude, comecei a participar de festivais aqui e eu já era da universidade. Não pensava em ser artista de jeito nenhum. Papai não queria que eu fosse artista, me incentivava que fosse advogado ou que fizesse um concurso.
Por que você foi expulso do Colégio Nóbrega?
No Colégio Nóbrega, fui expulso porque eu mandei o meu professor para aquele lugar. Fui convidado para um concurso do cônsul Marcel Morin, cônsul da França, para quem passasse iria viajar para aquele país e eu ia bem na matéria. Mas comecei a jogar basquete com 12 anos de idade. Com 14, era seleção pernambucana de basquete juvenil. Era um tempo maravilhoso, dos meus grandes amigos: Silvio Bombinha, Hélio Menezes, Gustavo Lima, era a turma do Náutico. Entrei na seleção e ia para Ponta Grossa, no Paraná, ou ia pra França. Eu sabia tudo o decorado.
Como deixei o curso que me levaria à França, o professor ficou com raiva de mim: que ele era um dos que trabalhavam nesse projeto. Eu estava precisando de meio ponto para passar. Depois da prova oral, o professor botou zero. E pedi ao professor para botar o meio ponto. Insisti muito e ele disse: “É zero o que você merece!”. Olhei para a plateia que estava lá, que era a turma minha do colégio. Eu disse pra eles: “Olha, vocês sabem que eu sei francês, que eu fui convidado pelo Cônsul Marcel Morin para poder ir pra França. Mas agora, eu precisava de meio ponto, porque tive que viajar, porque prefiro, foi pra viajar com a minha turma e ele me botou zero. E pedi meio ponto, ele não deu. Então, professor, soque naquele lugar o seu ponto, o seu meio ponto!”. E o professor, o padre falou que todo mundo aqui gostava muito de mim, mas que daquela vez eu havia passado dos limites e fui expulso.
Eu também jogava futebol. Deixei, nunca mais joguei, porque a gente jogava no Nóbrega, que é o campo mais surreal do mundo, que era cheio de mangueira. A bola assim, eu pulei pra poder meter a cabeça. Quando caí, o goleiro pegou a bola e caiu e quebrou a minha clavícula. Foi aí que eu desisti do futebol.
E depois do Colégio Nóbrega, fui para o Colégio Padre Félix e, ao chegar lá, tive que repetir o ano. E lá, o professor de francês era diferente, porque o do Nóbrega era muito tranquilo. Vi que a pronúncia dele não era boa e sugeri levar um amigo meu que é filho de um cônsul da França. E ele: “Vou logo lhe avisando, meu filho, o meu francês é de Norte de França”. Mentira dele!
E depois veio o tempo do cinema francês no São Luiz? Você era parecido com o ator francês Jean-Paul Belmondo?
Neste momento, estava sabendo francês. Um ano ou dois depois, comecei a entrar pelo cinema francês. Ia ver filmes da nouvelle-vague com Belmondo, diziam que era parecido com ele. Modéstia à parte, sou mais bonito que ele, porque ele tinha o nariz quebrado, deram uma porrada nele no boxe.
Então, virei o galã da nouvelle-vague. Frequentava o Cinema São Luís todos os dias, eu assistia todas as sessões. Saía das salas e fazia e passava a mão assim. [imita o gesto do ator de fumar e, em seguida, passar o dedo polegar nos lábios de forma sensual]. Quando as meninas passavam, elas diziam: “Meu Deus, ele é a cara do galã!”.
Mas eu era muito tímido para arranjar uma gatinha, porque eu não sabia o que era que conversaria com uma mulher. Por quê? O que minha irmã e as amigas dela gostavam era de roupa. Ela me vestia também, ela comprava uma roupinha. Eu não queria saber de negócio de roupa. O negócio dela era roupa, umas gostavam de joia e eu, não.
Então, eu não sabia o que é que iria conversar com as meninas. Foi difícil para poder arranjar, era tímido. Aí, depois arranjei. Oxi! Depois é uma quantidade (27:10) que você não pode imaginar.
Você tem muitas musas. De que forma as mulheres inspiram muito você a compor?
A mulher, para mim, é a coisa mais importante da humanidade. A mulher é o máximo, tenho uma fixação. Não é questão sexual e nem com a minha mãe, não. Amo meu pai. Agora, minha mãe, mais. Acho que a mulher é a coisa mais importante. Primeiro, a mulher tem mais sensibilidade. Tem outra coisa: mulher é mãe. A relação do homem com a mãe é forte porque ele mama na mãe. A menina também mama na mãe. Sou louco por mulher. Historicamente, antigamente, elas viviam em casa, tomavam conta da comida e cuidavam de tudo, quem educavam os filhos.
Por exemplo, a minha mãe era quem era que tomava minhas lições e dos meus irmãos. E meu pai era maravilhoso, apaixonado por ele também. Mas era uma outra coisa, outro tipo de relação. As mulheres vão tomar conta do mundo daqui a um tempo, acho que o mundo será melhor. A mulher é menos belicosa do que o homem. Agora, também, pelo amor de Deus, não vão deixar o pobre do homem ser agora destruído não, vamos ter um equilíbrio disso tudo.
Como você se inspira para produzir uma música?
Várias coisas e, sobretudo, lembranças. Por exemplo, estou olhando aquele coqueiro ali [o apartamento que estamos no terceiro andar da Avenida Boa Viagem, com alguns coqueiros e a praia como cenário]. Eu olho, vi essa vista, não vou pegar um violão agora e ficar aqui criando. Na verdade, vou lembrar daquela vista, daquele coqueiro. Tem as minhas musas e também a licença poética também que você vai fazendo, com o correr do tempo. Não é um mentiroso.
Por exemplo, quando digo que encontrei uma moça muito bonita vestida de princesa, no bairro do Recife, no Carnaval no Bairro do Recife, mas pode não ter sido real. Mas tem muitas musas também, pessoas que me deram inspiração.
Você teve discos que estavam meio esquecidos, mas que a internet depois trouxe à baila. Muita gente está podendo acompanhar esse material e você também é muito presente na internet: antes era Facebook e agora com mais frequência no Instagram. Como avalia o sucesso dos seus antigos álbuns com a internet?
Tenho centenas de fotografias, tenho um olhar fotográfico. Eu fotografava pra caramba e depois eu voltei até com as fotografias. Estava começando o Instagram e, de repente, começaram as fotografias ruins pra caramba dele no Instagram. E aí não dá tempo, porque você fica claro que é democrático, não dá tempo, o menu é maior do que a fome. Aí eu dei fome.
Eu escrevi um livro chamado “Inacreditáveis Histórias Verdadeiras”, que são as histórias que eu vivenciei aí perdi o livro que estava num computador e ficou no Rio de Janeiro, no Aeroporto Galeão, num táxi. O cara não me devolve. Perdi e não sei fazer a mesma coisa. Era o assalto que eu sofri, meu irmão viajando pra Salobro, mil coisas que estavam ali…
Como foi seu tempo morando na França?
Quando fui pra França, estava numa situação aqui de uma gravadora. Estava chateado com o que estava acontecendo com a Ditadura Militar. Resolvi morar na França e Decinho me salvou, porque eu ganhava dinheiro de uma gravadora e não sabia que tinha. Era da Som Livre, nem vendia tanto, mas era colocado uma cadeira de poupança e não sabia, me esqueci disso e, então, vivia do mesmo jeito. Vivia assim na simplicidade total e descobri que tinha essa grana, mas que não era lá grande coisa.
Depois chamei Paulinho Rafael [guitarrista e parceiro por cinco décadas na música] e minha namorada na época para viajar. Passamos um ano. Fomos para lá, ela vendeu o carro e outras coisas. Ao chegar na França, a situação era difícil. Porém, lá a gente não podia ficar por muito tempo. Era uma situação tão difícil que a gente tinha que tomar por semana dois chopes cada um. E, no dia 1º de julho, data do meu aniversário, no ano de 1979, passei das contas e minha namorada falou que, a partir de então, a gente ia ficar sem beber durante semanas, porque bebemos os chopes que eram de Paulinho.
Mas a coisa mais louca é que fiz um ciclo de amizades inacreditável lá. Minha mãe dizia: “Meu filho, se você não tiver dinheiro, por favor não beba nenhum chope, não deixe ninguém pagar para você. Se você tiver, tudo bem!”. E eu não tinha.
A cidade que mais me encantou na vida foi Paris, porque vivia no meio artístico. Era uma turma de exilados também, eu não era exilado, fui um exílio voluntário, então vivia no meio daquela turma, todo mundo muito bacana, só não vim tomar nem um chope [risos]. Lá, nunca jantei ou comi fora de casa, nunca reclamei.
Às vezes, ligava pra papai e via uma enorme fila no orelhão. Estava quebrado pra não pagar. E ele dizia: “Não deixe de ir para Portugal, por amor de Deus, aproveite!”. Fui E, ao chegar em Portugal, me apaixonei por Lisboa, porque apareceu um cara que nos apresentou a Praça do Comércio, o bairro do Castelo, fiquei louco! O rapaz disse: “Eu vou na casa da minha mãe, estou voltando já já!”. Deu um segundo e o cara nunca mais voltou, mas pode ter sido até condição, é uma coisa. Me apaixonei por Lisboa. Quando a carreira estava andando bem, fui gravar na Holanda, depois fiz o primeiro show em Portugal. Lisboa e Porto são as cidades de Portugal que moram no meu coração. Pois bem, essa relação com as cidades que mais me comovem são Recife, Olinda, Porto e Lisboa, é o quadrilátero.
E o trabalho da nova geração dos Valença: seu filho Juba e seu sobrinho Bernardo Valença. Como avalia?
O trabalho que os meninos vêm fazendo é muito bom, não me meto no que eles estão fazendo. Gostei muito do frevo de Bernardo com a Orquestra Malassombro [Frevo Descalço]. O Juba tem uma sintonia para o frevo: presença, eletricidade. Ele é incrível! Fiquei até pensando, não só neles, em fazer um tipo de movimento com essa nova geração, para talvez fazer em algum espaço. Poderia ser, por exemplo, na Casa Estação da Luz, que fica em Olinda.
Gostaria de sugerir uma ideia que seria reunir artistas que estão fazendo o legítimo carnaval de Pernambuco. Aqui seria algo como um certo movimento de música carnavalesca pernambucano. A ideia seria juntá-los. Pensei em colocar o nome “Terças Pernambucanas”. Depois, poderia ser feito um movimento de forró, em outra época, com toda terça com uma atração diferente. Então juntando essas pessoas, ficará uma coisa maravilhosa.