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Emilia Pérez
Jacques Audiard
FRA/BEL, 2024. 2h10. Drama. Distribuição: Paris Filmes
Com Karla Sofía Gascón, Zoe Saldana, Selena Gomez
Transição de gênero, elementos do sincretismo religioso mexicano, narcotráfico e música pop coreografada. Difícil imaginar o bom funcionamento de um filme que propõe a fusão de ingredientes tão distintos. Surpreendentemente, Emilia Pérez (2024) não apenas tem êxito em sua proposta; é uma obra singular, cuja audácia em subverter as expectativas do público beneficia a experiência (diferente de outro musical recente, onde há menos ousadia e mais apatia).
Vencedora do Prêmio do Júri e Melhor Atriz (em conjunto, para as quatro atrizes principais) do Festival de Cannes 2024, a produção é mais uma comprovação da versatilidade de Jacques Audiard. Aos 72 anos, o cineasta francês tece uma narrativa pulsante, de admirável energia. O enredo – livremente baseado no romance Écoute, de Boris Razon – se desdobra a partir do desejo do traficante Manitas del Monte (Karla Sofía Gascón) em abandonar a vida da criminalidade e realizar seu maior desejo: assumir-se mulher. Com ajuda da advogada Rita Moro Castro (Zoe Saldana), apaga-se o antigo eu masculino para o nascimento de sua verdadeira identidade: Emilia Pérez.
Apesar de ser uma produção franco-belga, Emilia Pérez é um filme falado em língua espanhola, tendo o México como principal localização geográfica da narrativa (há passagens em outros países, como Inglaterra e Suíça). Além da identificação espacial, o país latino-americano funciona como fonte de inspiração temática para o longa. São evidentes as referências à teledramaturgia das novelas mexicanas; o melodrama enaltecido pelas lágrimas e sofrimentos infindáveis, além de narrativa com forte apelo musical – quem nasceu antes dos anos 1990 haverá de lembrar de Maria do Bairro e outras novelas semelhantes.
O próprio segredo da protagonista (e isso não é spoiler), que esconde sua identidade da família, é muito novelesco. Há de se frustrar, no entanto, quem encarar o filme com olhos realísticos demais. A fantasia é componente-chave para absorver a virtude de Emilia Pérez; por isso, faz todo sentido o filme adotar as convenções do musical clássico, com seus diálogos cantados e coreografias extravagantes. Ainda assim, Audiard ousa ao apostar em canções com certa dose de estranheza, por vezes bizarras, por vezes engraçadas. Não, não é aquela trilha sonora belíssima que você vai querer escutar após o filme. Mas funciona.
Tenho dois incômodos predominantes em relação ao filme. O primeiro é a ausência de uma possível problematização acerca da transfobia que, convenhamos, aconteceria em relação à protagonista, principalmente quando esta ganha destaque midiático durante o desenrolar da história. Uma coisa é evitar cenas de violência contra os corpos trans – neste quesito eu concordo integralmente. Contudo, a obra traz questões sociais complexas (como os desaparecidos vítimas dos cartéis) e não se detém a refletir sobre as mortes de pessoas trans no México.
E o outro fator problemático se chama Selena Gomez. Perdoem-me os fãs que, se lerem este texto, irão me cancelar, mas a limitação dramática da atriz implode a sua personagem. Nem mesmo quando canta, Selena me convence. Ainda bem que o filme conta com a estupenda Zoe Saldana, brilhante como a advogada-amiga da protagonista, além da marcante performance de Karla Sofía Gascón, cuja vida pessoal encontra similitudes com a de Emilia Pérez (a atriz já era casada e tinha uma filha, quando decidiu fazer a transição).
Com um desfecho que remete ao sincretismo dos santos religiosos populares do México, não aceitos oficialmente pela Igreja Católica, Emilia Pérez é um filme de inegável força. Vestido com a roupagem da música pop, entrega cenas singulares que, sim, devem dividir opiniões. Encontro-me no grupo dos que o consideram um ótimo filme.
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