Duna: Parte Dois
Dennis Villeneuve
Dune: Part Two, EUA e Canadá, 2024, 2h46. Distribuição: Warner Bros. Pictures
Imaginar outros mundos e inserir neles reflexões sobre nossas questões humanas é uma premissa clássica da ficção científica. Ao longo dos anos, certos exemplares fizeram isso de maneira mais sofisticada e sólida, como em Duna. Junto de outros nomes da época como Ursula Le Guin e Octavia Butler, o escritor Frank Herbert conseguiu estender as fronteiras do gênero e levar a outras galáxias os conflitos que ainda hoje estão presentes apenas no nosso planeta. No caso de Duna, especificamente, as relações que se desenvolvem a partir do processo de colonização são a fonte primária da história.
Por conta da complexidade das questões trazidas pelo enredo, é mais do que justificável a escolha da divisão da história em duas partes. Uma tática já conhecida em Hollywood que normalmente era feita em finalizações de sagas, mas que, no entanto, não deixa de funcionar com o seu início. A primeira parte foi a apresentação do universo do romance, a disposição das peças no tabuleiro do jogo de interesses políticos; já a segunda parte é a imersão completa neste universo fictício, além dos desdobramentos dos conflitos previamente armados.
O mergulho na cultura de Arrakis é intenso e muito bem feito, de modo que a adaptação faz jus à riqueza da obra de Herbert, principalmente se apontarmos que o filme não usa os diálogos como ferramenta principal neste processo. O próprio Dennis Villeneuve já falou em entrevista ao The Times que o diálogo é para teatro e televisão e que, para ele, o cinema se comunica através da força das imagens e do som.
Em Duna: Parte Dois ele põe em prática sua crença, e o resultado é admirável. A caracterização e a cenografia requintadas nos apresentam aos outros mundos do longa tanto quanto as conversas, que são breves e com foco nos momentos de silêncio e nas expressões faciais.
Estes elementos se combinam para mostrar a profundidade do povo fremen de Arrakis, que acolhe os personagens de Timotheé Chalamet e Rebecca Ferguson, introduzidos à vida no deserto por Javier Bardén e Zendaya. Estes quatro personagens são a porta de entrada para a narrativa política do filme: dois estrangeiros e antigos colonos do planeta, que agora se associam aos nativos e seus costumes a fim de sobreviver, ou, em uma leitura mais suspeita, se apropriam da cultura e das crenças de um povo para retomar seu lugar no poder.
É nesse pequeno universo amostral que se desenvolve uma discussão sobre os conceitos de liberdade, opressão, fundamentalismo religioso e a manipulação de uma cultura pelos interesses econômicos da elite, seja pela violência ou pela diplomacia. Além do questionamento persistente: como pode a liberdade de um povo nativo vir pelas mãos daqueles que a pouco tempo ocupavam o lugar de dominação?
Chani (Zendaya) enxerga os perigos da demagogia dos Atreides e seu fundamentalismo. A ela não interessa o comércio, as grandes casas ou o império, somente a possibilidade de paz em um planeta que vive há décadas um apagamento étnico de seu povo. Povo este, que se agarra fervorosamente à ideia do “Lisan al-Gaib” – o messias – por não terem mais a perspectiva da vitória apenas em si.
Como toda superprodução norte-americana, o filme tem seu momentos de ação e batalhas épicas, que não deixam de agregar à narrativa ideológica, apesar de ocupar um pouco demais o tempo na tela. Duna: Parte Dois surge ainda mais grandioso e ambicioso que seu antecessor, e abre espaço para continuações instigantes. Uma adaptação que foge de alguns clichês e, de fato, se propõe a vasculhar nuances de um gênero tão complexo como a alta ficção científica e tem sucesso nisso.
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