Exibido no É Tudo Verdade, filme de Sandra Werneck traz depoimentos de famosas e anônimas
O Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, em sua 22º edição, apresentou o documentário inédito de Sandra Werneck Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas. O tema é polêmico e infelizmente, não perde a atualidade – estupro e abuso sexual cometido contra mulheres, famosas ou anônimas, que surgem na tela relatando suas histórias.
E embora o foco principal de Werneck seja a classe média e alta, normalmente avessa a esse tipo de exposição, o que faz do documentário uma exceção à regra é que surgem em cena personagens mais simples, empregadas domésticas. O ambiente é em geral a moradia, o que valida as estatísticas que se têm a respeito. A maioria desses crimes ocorre entre quatro paredes, na família. A violência doméstica, mais comum do que aquela que se vive nas ruas, não escolhe classe social, mas de modo geral, nas famílias mais abastadas, esses delitos sempre evitavam o caminho da delegacia.
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Uma das entrevistadas é ninguém menos do que a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, nome emblemático para a sociedade brasileira, não apenas pela sua história trágica – devido à violência de seu marido, o médico colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, ela ficou tetraplégica -, mas pela luta nos tribunais e pela campanha que resultou na famosa lei número 11.340, denominada popularmente com o seu nome. Ganha destaque a participação de Luiza Brunet, que fala de sua trajetória como modelo, da relação com o seu corpo, do processo por violência e maus tratos envolvendo o ex-namorado, o empresário Lírio Parisotto. Em uma cena, Brunet se torna a interlocutora da própria Maria da Penha.
Outro momento forte é a revelação da escritora Clara Averbuck sobre o ocorrido em sua adolescência, dentro de uma escola. A narrativa é alinhavada por protestos de grupos feministas nas ruas, vigílias, e de modo geral a estratégia é a de deixar o personagem contar sua história em seu ambiente, sua moradia, no seu ritmo, sem interferências visíveis.
Findo o documentário, saí da sala com aquela sensação de que faltava alguma coisa. A narrativa era convencional, não traz nada de novo em termos de linguagem, mas os personagens e os testemunhos sim, portanto cumpria sua finalidade. Se houvesse dramatização seria melhor? Mais cortes e um clima de suspense? Por uma coincidência, o próximo filme a ser exibido foi o documentário 78/52, do estadunidense Alexandre O. Phillipe, vencedor de prêmio em Sundance. A icônica cena do chuveiro em Psicose (1960) estrelada por Janet Leigh, como a infeliz Marion Crane, e Anthony Perkins, o perturbado Norman Bates, é revista e comentada por pessoas que participaram da produção, por críticos e fãs de peso como Peter Bogdanovich, Guillermo del Toro, Gus van Sant, Danny Elfman, Bret Easton Ellis, e até pela filha de Janet, Jamie Lee Curtis, que explica nunca ter tido coragem de reproduzir a cena que era o “legado de sua mãe”, apesar dos pedidos.
O documentário imerge em destrinchar todo o making of da cena genial, que se tornou um marco do cinema e que não dura mais do que 3 minutos. Ficamos sabendo então que Hitch não queria sons de estúdio e fez a produção esfaquear diversas frutas como melão para decidir qual seria o melhor áudio para o crime, que de fato resulta mais impactante. Outro dado já conhecido era a cortina, na verdade para satisfazer a censura, e que confere às imagens uma carga ainda maior de voyeurismo. A misoginia do genial diretor e sua predileção por torturar loiras é sobejamente conhecida, e a biografia de Tippi Hendren, atriz de Os Pássaros (1963), filmagem que lhe deixou sequelas traumáticas para o resto da vida, só confirma isso.
Confesso que nunca tinha atentado para tantos detalhes da cena, como por exemplo, a posição da faca, símbolo fálico, que sugere um estupro. À certa altura, o ator Elijah Wood faz um comentário acentuando o caráter erótico da cena, comentando que ela lhe trazia muito mais emoção do que por exemplo, a cena do estupro em Irreversível (2002), tão “fria”. Seu comentário é acolhido com entusiasmo pelos produtores Josh Waller e Daniel Noah que lhe fazem companhia no sofá. Outro fã que admira o caráter empático da cena é Eli Roth, naturalmente, o autor da franquia O Albergue (Hostel), uma das mais sádicas e sanguinolentas formas de prazer e entretenimento em formato de cinema do século 21.
O comentário me fez voltar então ao filme de Werneck. Sem dúvida, o diretor de suspense era um mago do entretenimento e do thriller. Mas a questão do erotismo “frio” da obra de Gaspar Noé, protagonizada por Monica Bellucci, é questionável, uma vez que o thriller do diretor não foi feito para seduzir ninguém. Não foi isso o que senti ao assistir ao filme de Noé, certamente, e sim angústia profunda. Precisamos falar sobre Hitchcock.
Nesta sexta (5), às 22 horas, o documentário Mexeu Com Uma, Mexeu Com Todas estreia com exclusividade no canal Curta!.