Como seria o mundo se os homens cisgênero começassem a valorizar a estética transmasculina? É essa a pergunta que surge como ponto de partida para Cisforia: O Pior dos Dois Mundos – Vol. 1, o novo quadrinho de Lino Arruda e Lui Castanho. A narrativa gráfica, que chega como a primeira assinada em coautoria pela dupla, apresenta um mundo “desconstruidão”, onde todas todas as práticas dissidentes e não-reprodutivas e toda a cultura LGBTQIA+ são profundamente exaltadas, cabendo aos homens cis héteros uma posição marginal em termos identitários.
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“Os homens cis ficam à margem em paralelo à forma como as mulheres trans e negras estão à margem da nossa sociedade atualmente. Nós usamos esses modelos, mas não chega a ser exatamente um modelo de inversão, pois é uma HQ um pouco mais complexa”, foi o que explicou, em entrevista à Revista O Grito!, o ilustrador e quadrinista Lino Arruda, que também assina o roteiro.
Como muitos dos seus quadrinhos e zines, a premissa da HQ partiu de conversas descontraídas, vindo à sua mente quando, certa vez, estava no aeroporto com uma amiga. “Vimos um cara e começamos a nos perguntar se ele era trans ou não. E aí, fomos colocando os elementos estéticos bem ludicamente para chegar nessa conclusão. Ficamos ‘mirabolando’ nisso e assim surgiu a ideia de pensar como seria o mundo se a masculinidade cis almejasse uma estética, um comportamento ou até um status social mesmo da transmasculinidade.”
Mas, para chegar num contexto onde esse fenômeno seria possível, uma nova pergunta pairou no ar: o que precisaria ter no mundo hoje para que os homens cis fossem marginalizados? A resposta veio para Lino através dos atuais e lamentáveis dados de feminicídio e de violência sexual contra as mulheres. “Pensamos nisso como suficiente para enquadrar a cis masculinidade como potencialmente criminal desde a sua concepção identitária”, comentou.
A neotransmasculinidade
Assim, ao lado do roteirista e escritor Lui Castanho, nasceram os primeiros esboços da Nova São Paulo, uma cidade-estado comandada inteiramente por mulheres, onde o consentimento é a régua para todas as relações e a transgeneridade é a norma hegemônica. No entanto, o que num primeiro momento aparenta carregar ares de uma utopia trans e feminista, logo se revela uma realidade distópica e embranquecida.
Em meio a esta sociedade hiper vigilante, onde todos os homens cis têm implantado um chip antiestupro, o protagonista Ariel, um imigrante negro que chega à cidade através de um programa de equidade racial, passa a enfrentar a Cisforia, um estado de profundo sofrimento mental em relação à própria cisgeneridade. À medida que descobre não estar sozinho nessa luta, ele começa a explorar uma nova identidade de gênero: a neotransmasculinidade. O problema é que a liberdade para Ariel ser quem é está ameaçada nesse mundo de constante policiamento.
“Desenvolvemos essa história como se fosse uma cisão de realidades, então poderia ser 2023, mas é um 2023 que se desenvolveu em uma outra perspectiva de gênero, portanto as tecnologias se desenvolveram a partir do que essa sociedade almeja”, detalhou o roteirista Lui Castanho, também responsável por desenvolver o argumento da história. “Quando a gente pensa na materialidade do chip contraviolativo e dos diversos brinquedos sexuais desenvolvidos parece uma coisa de outro mundo, mas não necessariamente.”
Para ele, Cisforia surge como um ponto fora da curva dentro do gênero de ficção científica. “Apesar de termos muitos exemplos de histórias de ficção científica, a maioria ainda vai muito no ponto da tecnologia, do apocalipse, do desastre natural. Ainda são poucos os exemplos de ficções sobre o entendimento de gênero e de sexualidade, ainda são poucas as ficções científicas que mexem nessas estruturas”, pontuou em conversa a O Grito!.
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Nesse sentido, Lino Arruda revela que o trabalho com ficção permitiu uma criatividade mais explícita e destemida para explorar temas ainda tabus como fetiche, BDSM e não-monogamia com uma pitada mais ácida de humor. “É um conteúdo mais voltado para a comunidade mesmo, para a ‘bolha’, digamos assim. Não tem um grau de didatismo. Já parece estar dentro da linguagem do submundo, da subcultura trans”, contou. “Isso até se reflete no tipo de traço que a gente escolheu, que remete mais a cultura pop.”
O que vem por aí
Pensada inicialmente como uma trilogia, Cisforia deve ganhar ainda um quarto volume, segundo os autores. Para a dupla, que já trabalhou junta em Monstrans: Experimentando Horrormônios, HQ autobiográfica de Lino, a coautoria na série em quadrinhos representa uma possibilidade de ecoar um processo de criação coletiva que atravessa os mais de dez anos de amizade entre eles. “É muito massa poder escrever histórias que não sejam em solidão”, refletiu Lui.
Nos próximos títulos, ilustrador e escritor prometem se aprofundar ainda mais nos conflitos e relacionamentos entre os personagens em contraste com o caráter mais introdutório desse primeiro livro. “O público pode esperar ficar mais íntimo dos personagens agora que já sabem onde eles estão. Os conflitos vão ficar cada vez mais apertados, exigindo novas movimentações.”
Executado através de recursos do ProAC 2021, Cisforia: O Pior dos Dois Mundos – Vol. 1 contou com financiamento coletivo no Catarse e hoje está à venda através da loja virtual de Lino Arruda.
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