A Doroteia de Antonio Cadengue
Encenador pernambucano volta a montar texto de Nelson Rodrigues em um trabalho que dialoga o clássico e o moderno
Por Mateus Araújo
Faz exatos 21 anos que o encenador Antonio Cadengue resolveu responder no palco à provocação de uma mulher. Ela – em nome da Prefeitura do Recife – disse que não daria apoio a uma peça com texto de um “pornográfico” como Nelson Rodrigues. “Ao menos fosse um clássico…”, sugeriu a senhora nas entrelinhas. E em algumas semanas seguintes, lá estava Cadengue arrancando aplausos efusivos do público e da crítica com sua versão shakespeariana de Senhora dos Afogados. Duas décadas depois, o diretor volta a experimentar a “pornografia” rodriguiana se reafirmando como um dos nomes importantes para o teatro pernambucano, numa montagem pontual de Doroteia, num tempo em que ainda dói, para muitos, falar do que está por dentro e gritando para nascer – ou sair.
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O texto faz parte da classificação de farsa irresponsável, dada pelo próprio Nelson. A história se debruça nas hipocrisias e nos puritanismos de uma família conservadora, acentuando questões de preconceito, sexualidade desviante, ódio, horror e transgressões morais. Tudo isso vomitado dentro de uma casa onde não se dorme, para que os desejos não se manifestem nos sonhos. No centro dessa obra que explora o grotesco e o trágico – mesmo que com a típica ironia inerente à obra de Nelson Rodrigues – estão quatro mulheres: as primas viúvas D. Flávia, Carmelita e Maura, e a menina natimorta, Das Dores (Mauro Monezi) – mulheres trancafiadas em vestidos longos, escondendo qualquer curva do corpo, se mascarando nas chagas e nas feridas do rosto, num universo em que bom hálito é “demais para uma mulher honesta”.
Na encenação de Antonio Cadengue, a casa virou um grande necrotério, reforçando a frieza dessa família recalcada. O grande ponto de virada da história é regresso de Doroteia, a prima linda e prostituta, que volta para debaixo das assas das parentes após a morte do seu filho. Ela implora a aceitação, mas em contrapartida tem de viver morta-viva como as outras: feia, desencorajada, ranzinza. E aceita, ou ao menos tenta. Mas há dentro da protagonista o duelo humanista. Ela não é igual às outras, não sentiu a náusea que tomaram as outras na lua de mel. Ao contrário: gostou, viveu o desejo, descobriu o sexo. E Doroteia ressurge como, na verdade, a grande angústia existente dentro daquelas mulheres que tentam a todo custo fugir de si e justificar o fracasso do casamento, recolar os fragmentos de algo que o tempo já espatifou. A linda moça afrouxa ainda mais as regras e termina por ser tão igual a Das Dores, a mais nova da casa, nascida morta e viva como uma contradição e prova de que não se pode controlar o que está preste a sair.
Estética em diálogo
Em 60 minutos de espetáculo, Antonio Cadengue conduz sua plateia para uma encenação embasada numa estética clássica e ao mesmo tempo moderna, evidente desde o prólogo, quando apresenta as personagens. O diretor leva à cena marcações bem acentuadas, com gestos que sublinham e reforçam o texto. A condução do corpo dos atores se reveza em direção àquele que está falando ou, em outros momentos, àquele para o qual se está falando, guiando a visão do espectador. Há, em alguns traços, uma característica de coro nas falas das personagens Maura e Carmelita. O que Cadengue parece traduzir na sua releitura é um diálogo entre a estética dos diretores Ziembinski (responsável pela primeira montagem de Doroteia, em 1950, aos moldes clássico) e Antunes Filho (que refez Nelson através dos mitos).
Claro que Cadengue traz um novo olhar sobre a farsa rodriguiana. E nos apresenta isto com tons da teoria de Brecht, que trabalha os estranhamentos. Neste trabalho, num ritmo lento, o diretor pernambucano costura o trágico ao performático, ao que ele chama de hiperteatralidade. Numa história em que a figura masculina é abominada – ou temida – o diretor brinca com isso e opta por usar um elenco formado exclusivamente por homens vivendo mulheres. Na rubrica de Nelson, eles seriam representados apenas por uma bota, que seria Eusébio de Abadia, o noivo de Das Dores (naquela família, as mulheres puras não conseguem enxergar homens, e o dramaturgo recorre à coisificação, então). Ainda neste contexto, Antonio Cadengue relê também a figura do jarro – proposto por Nelson Rodrigues como aquilo que faz referência à libido de Doroteia, que guardava o objeto no quarto e com o qual lavava suas partes íntima –, transformando-o em um homem (Rodrigo Porto Cavalcanti), ora nu ora vestido na beca, que surge em cena como o fantasma da carne que “assombra” a protagonista ou lhe fez entender-se humana.
No palco, se revezam sete atores. O trio de viúvas é formado por Carlos Lira, Rudimar Constâncio e Marinho Falcão, que interpretam, respectivamente, D. Flávia, Carmelita e Maura. A primeira personagem é uma espécie de “a senhora da casa”, enquanto as outras duas, as que obedecem. É importante frisar, então, a excelente desenvoltura de Carlos Lira no papel, potencializado por sua dicção e pelos gestos e olhares exagerados no momento certo e minuciosos quando se precisa. Pode-se dizer que é de Lira a mais convincente interpretação nesta montagem. Somado a isso, não passa despercebido o bom trabalho de Rudimar e Marinho, que compõem um bom coro sarcástico e dramático. Os três, inegavelmente, têm merecido destaque e dão um tom forte à peça.
Por outro lado, falta mais verdade na interpretação de Roberto Brandão, que vive Doroteia. É importante pontuar o crescimento profissional do rapaz, que protagoniza as três mais recentes peças de Cadengue (Além de Doroteia, ele encenou Vestígios e As Confrarias). Roberto deu um salto de interpretação, mas ainda cai em alguns pecados, sobretudo na voz, que termina não passando confiança no que está sendo dito, e na sua postura corporal às vezes curvada para frente, que nos parece viciante. Algo que aos poucos vai sendo melhorado, com o decorrer da encenação. Afora isso, Brandão é o centro da provocativa sensualidade do corpo masculino dentro de uma personagem feminina.
Como marca inegável do trabalho de Cadengue, a plasticidade da peça é excelente. O classicismo inerente à montagem é reforçado num belo figurino assinado por Aníbal Santiago e Manuel Carlos, erguidos em alegorias e volumes. São vestidos longos, pomposos, acompanhados de leques e chapéus, em cores escuras e contidas. No caso de Doroteia, o vestido vermelho realça a beleza do ator e reafirma as provocações do corpo. Já a roupa de Das Dores, um vestido de noiva, nos faz pensar num teatro Nô, em prevalecente tom branco. A personagem ainda usa uma máscara, de mesma cor, também destacando as características de farsa proposta por Nelson. Há, ainda – com exceção da protagonista – uma maquiagem extravagante, que confirma o caráter grotesco do trágico da história.
O cenário de Doris Rollemberg nos faz refletir sobre essa morte em vida que o puritanismo nos faz viver, e sublinha as hipocrisias guardadas nos cofres e nas gavetas das famílias conservadoras – tudo prestes a sair a qualquer momento. É um trabalho de qualidade, que reproduz enormes gavetas de um necrotério, também numa coloração entre o branco e o cinza. A luz, assinada por Luciana Raposo, também é acertada e faz alusão a um universo fantasmagórico. Tudo isso, amarrado pela trilha sonora de Eli-Eri Moura, que se utiliza do canto lírico como peça fundamental na construção deste notável espetáculo.
Ao que parece, temos com Doroteia mais um perspicaz trabalho de Antonio Cadengue para o nosso teatro pernambucano e brasileiro. Uma obra tão atemporal, que, embora escrita em 1947, ainda nos faz rever questionamentos importantes e nos provoca a levar ao palco a contemporaneidade de uma sociedade ainda com fragmentos retrógrados. Doroteia nos faz relembrar arquétipos e tabus. Uma peça essencial, somada à produção artística atual, no rol dos debates propostos por trabalhos como os filmes Tatuagem, de Hilton Lacerda, e Praia do Futuro, de Karim Aïnouz – que ainda fazem gente sair da sala do cinema por não querer ver relações homoafetivas – e de espetáculos como Viúva, porém honesta, do Grupo Magiluth, mostrando possibilidades de desconstruções e possibilidades estéticas.
DOROTEIA
Companhia Teatro de Seraphim (PE)
[1h / Farsa Irresponsável / 16 anos]
Texto: Nelson Rodrigues
Encenação: Antonio Cadengue
Elenco: Carlos Lira, Manuel Carlos, Marinho Falcão, Mauro Monezi, Ramon Guimarães, Roberto Brandão e Rudimar Constâncio.
Espetáculo em cartaz no Recife, no Teatro Barreto Júnior, até 22 de junho, de sexta a domingo, às 20h.
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Avaliação: Bom