Crítica: Riocorrente, de Paulo Sacramento

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Foto: Divulgação/California Filmes.
Foto: Divulgação/California Filmes.
Foto: Divulgação/California Filmes.

Riocorrente é perturbador e atual
Dialogando sobre protestos e insatisfação social no Brasil atual, longa faz discussão filosófica em linguagem audiovisual

Por Luiza Lusvarghi

Perturbador, provocante, não são poucos os adjetivos para qualificar a estreia de Paulo Sacramento como diretor. Em Riocorrente, um trângulo amoroso alinhava a narrativa. Marcelo (Roberto Audio) é jornalista e crítico de arte, e Carlos (Lee Taylor) é um ex-ladrão de automóveis que está tentando reiniciar a vida com uma lojinha de peças. Renata (Simone Iliescu) é uma mulher que se divide entre os dois. Mais que dois amores, eles se revelam como duas trajetórias de vida totalmente cindidas. Exu (Vinícus dos Anjos) é o companheiro de moradia de Carlos, mas a relação foge completamente do que poderia ser qualificado de familiar, é apenas solidária. Todos esses personagens são conceituais, não existe nenhum tratamento empático que faça deles uma referência subjetiva. É a partir dos diálogos que eles se revelam e se articulam.

Exu, o garoto de Riocorrente, representa o novo olhar, nada pueril, sobre o nosso futuro. Drogas, violência, solidão, a cidade global é o fim da infância, e não oferece nenhuma perspectiva democrática de sobrevivência. Sua relação com Carlos, que eventualmente lhe dá abrigo, está muito distante da concepção cristã de adotar uma criança pobre para salvar das ruas.

O filme de Sacramento introduz uma discussão filosófica sobre o (mal) estar no mundo hoje em forma de narrativa audiovisual. Em Riocorrente, a narrativa se constitui a partir de imagens, sem necessariamente apresentar um enredo clássico. São as situações protagonizadas pelos personagens que se articulam em questionamentos sobre o sentido da vida e da arte, numa cidade opressiva e curiosamente (para nós) vazia, que ao final domina a tela com suas ruas, emolduradas pelo rio que é puro lixo e putrefação, mas também renovação. Para expressar esse imaginário, ele contou com o apoio da magnífica fotografia de Aloysio Raulino, aqui em um de seus últimos trabalhos. As imagens de São Paulo lembram às vezes Noites Paraguaias, único longa de Raulino. Se a discussão sobre o triângulo amoroso assume função de metalinguagem para abordar os conflitos sociais e a violência da cidade, o Rio Tietê, com todas as suas contradições, se converte no fluxo inexorável da vida, que arrasta tudo na enxurrada.

Foto: Divulgação/California Filmes.
Foto: Divulgação/California Filmes.

A cidade é presente como moldura, ela não substitui a história dos personagens. A trilha sonora exerce papel essencial, com participações da Patife Band, Arnaldo Baptista, ícones da vanguarda musical do final da década de 1980, com o país em pleno processo de redemocratização, um tempo que não volta mais. Da mesma forma, a presença de inúmeras referências às artes plásticas, remete à função da arte dentro desta atmosfera – mero ornamento ou a dinamite que explode tudo para se expandir em novas ideias?

Os dilemas enfrentados pelos movimentos sociais de junho de 2013, que o filme antecipa, fazem das ruas um divisor de águas na história do país. Vale a pena seguir as regras? Marcelo, que é jornalista e crítico de arte, surge com expressão desolada diante da célebre obra modernista de Victor Brecheret, “Sepultamento”, no túmulo de Olívia Guedes Penteado, patrona do movimento modernista, no Cemitério da Consolação. Marcelo não consegue mais viver a rotina dos tempos globais na redação, mas tampouco se decide a correr riscos, evidente num dos diálogos mais interessantes do filme, entre ele e Renata.

Para Carlos, não resta mais nenhuma dúvida. E ele pode até não ser a mão que vai lançar o coquetel Molotov sobre a cidade em chamas, mas sabe que vivemos sob um modelo social falido, que promove sistematicamente a exclusão. Para que esperar? Na cena em que Exu se aproxima de um carro estacionado com intuito aparente de roubar, mas se controla e apenas risca a pintura, a frase em voz over de Carlos soa como uma palavra de ordem: “Tem de começar em algum lugar. Tem de começar alguma hora. Que lugar melhor que esse, que momento melhor que agora”. No desfecho, impactante, ele está só, diante do rio, ao lado do menino Exu, palavra que em ioruba designa tanto os porta-vozes que levam os pedidos e oferendas humanas aos orixás maiores, como o pequeno demônio que oscila entre o bem o e mal.

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De Paulo Sacramento
[BRA, 2014 / California Filmes]
Com Lee Taylor, Simone Iliescu, Roberto Audio
Filme estreou em SP e Rio e ainda é inédito no Recife e outras capitais

Nota: 8,5