Terminar de ler Linha M, novo livro de Patti Smith lançado no Brasil pela Companhia das Letras, dá ao leitor a estranha sensação de que ela está tão próxima quanto um contato de WhatsApp. Não seria incômodo mandar uma mensagem, um áudio. Patti provavelmente estaria no café ‘Ino, em Nova York, fazendo anotações em guardanapos, contemplando detalhes curiosos dos consumidores do lugar, remoendo situações comezinhas de seu cotidiano, planejando viagens, lembrando de sonhos com escritores favoritos. Sozinha.
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De natureza reclusa e voluntariamente solitária, Patti Smith nos entrega uma obra divertida, cheia de franqueza e vulnerabilidade. Isso acaba criando uma conexão que demora a se desfazer ao final da leitura. Linha M reúne memórias de Patti que remontam à sua juventude, mas também traz peripécias da artista em pequenas aventuras do dia a dia, como a compra de uma casa bangalô perto da praia e sua relação com cafés e séries de detetives (é apaixonada por The Killing e Law & Order). “Não é tão fácil escrever sobre nada”, pondera logo no início do livro.
É também um retrato sobre a sua relação com a perda. Na costura que faz de suas memórias, Patti monta um panorama não-aleatório desde sua infância em Michigan até a morte do seu marido, Fred Sonic Smith (ex-MC5). “Meu desejo por ele permeava todas as coisas – meus poemas, minhas músicas, meu coração”, escreveu o encontro inesperado que acabaria mudando o rumo de sua vida.
Mas o maior trunfo de Linha M é ter nos colocado em uma posição privilegiada dentro do universo criativo de Patti Smith, com seus livros, suas polaroides, suas paixões literárias e artísticas.
Patti nos conduz até a visita que fez à Casa Azul de Frida Kahlo, em Coyoacán, no México, onde, um pouco doente, acabou descansando na cama que pertenceu à artista. “Eu podia sentir sua proximidade, captar seu resiliente sofrimento aliado ao seu entusiasmo revolucionário”. No Japão, ela decide visitar os túmulos dos escritores Ryūnosuke Akutagawa e Osamu Dizai, grandes nomes da literatura nipônica do início do século passada e que têm em comum o fato de terem cometido suicídio.
Em outra viagem afetivo-literária, logo após o seu casamento com Smith, ela foi visitar a prisão dos sonhos de Jean Genet. Estava em uma excursão para a Ilha do Diabo, em Saint-Laurent, na Guiana Francesa, lugar citado no livro Diário de Um Ladrão, de Genet. “Em seu Diário, ele se refere a uma hierarquia criminal inviolável, uma santidade masculina que desabrochava em todo o seu potencial”, escreve Patti.
O autor francês passou por todos os estágios para chegar lá, sendo preso três vezes. Mas, quando foi condenado, a prisão que tanto reverenciava foi fechada pelo governo francês por ser considerada desumana. Patti decide então ir até lá pegar pedras do local para entregar a Genet, então com setenta anos e saúde frágil.
Em sua escrita costurada, Patti Smith elabora um depoimento honesto sem precisar tecer um fio narrativo ou uma postura definitiva sobre qualquer assunto. É ao mesmo tempo uma conversa consigo mesma, uma maneira de entender sua própria trajetória, as bases que a definiram enquanto artista, mas também uma forma de comunicação bastante direta com seus leitores. Abrindo ao mundo sua rotina, referências e memórias, Patti cresce como escritora.
Mesclando memórias com sonhos e detalhes de seu cotidiano, Linha M é essencialmente um livro sobre o presente. Um livro para que tenta compreender o presente.
Cantora e escritora, Patti Smith é uma espécie de guardiã das referências fundadoras do rock no século 20. Ícone americano, ela nos legou Horses (1975), um dos maiores clássicos da música e responsável por lançar bases para o movimento punk novaiorquino nos anos 1970. Também conseguiu levar o punk para a poesia com livros como Babel (1978) e Auguries of Innocence (2005). Pouco publicada por aqui, ela teve seu premiado Só Garotos, lançado pela Companhia das Letras em 2010.
Em Linha M, parece que somos convidados para um despretensioso passeio para falar da banalidade da vida, arte, literatura, cafés e viagens. “Não é tão fácil escrever sobre nada”.
LINHA M
Patti Smith
[Companhia das Letras, 216 páginas, R$ 39,90, em papel e R$ 27,90 e-book]
Tradução: Claudio Carina