O Crepúsculo dos Superdeuses
Clássico dos quadrinhos, O Reino do Amanhã usa mito dos super-heróis para falar de fascismo e religião
Reino do Amanhã é a uma das mais pungentes alegorias em quadrinhos do período negro que os super-heróis viviam na década de 1990. Apesar de relativamente nova, ela é considerada por muitos um jovem clássico e uma das obras-primas do escritor Mark Waid e do artista Alex Ross. A dupla idealizou sua história em quatro capítulos como um elaborado grito de alerta, e uma premonição sobre o futuro que aguardava os quadrinhos de super-heróis caso a maioria deles não se afastasse das tendências niilistas e violentas que estavam dominando a nova geração de superseres.
Os autores não escondem sobre o que trata Reino do Amanhã em seu cerne. Como uma das principais origens dessas tendências, que distorceram os valores morais dos super-heróis, teve influência dos quadrinhos mais “realistas” que invadiram as prateleiras norte-americanas com a entrada de autores britânicos na indústria na década de 1980. Waid e Ross espalharam vários easter-eggs referenciando algumas das HQs mais influentes daquela década, em especial Watchmen, uma das grandes responsáveis pela fase de heróis angustiados, psicologicamente problemáticos e de modus operandi violento.
Não demora para o leitor, ao lado do personagem Norman McCoy, testemunha e espécie de narrador da trama, descobrir que a nova geração de heróis, após eliminaram os supervilões do passado, agora vagam pelo mundo sem propósito ou causa, arrumando brigas entre si para satisfazerem seus egos e sua sede de combates e violência, sem se importarem com a segurança de transeuntes inocentes. Esta indiferença super-humana resulta num mundo de decadência humana e ruas em ruínas.
Outro reflexo da postura meta-humana relativa ao bem-estar do mundo é a maneira como os seres humanos passam a lidar com sua própria evolução como indivíduos e espécie. No Reino do Amanha não há mais Jogos Olímpicos, e o Prêmio Nobel deixou de existir, fatos indicativos de que, num mundo onde super-seres lutam sem valorizar a vida de pessoas sem poderes, “nós” desistimos de superar nossas realizações, porque os meta-humanos fazem isto sem o menor esforço, e a todo momento exibem-se como superiores a meros mortais.
A banalização e transformação dos super-heróis clássicos, antes inspiradores, em franquias que pouco respeitam seu legado é outro reflexo da queda de moral sofrida pelos super-heróis. Planeta Krypton, o restaurante com temática super-heróica, e biografias de heróis da Era de Ouro nas prateleiras de uma loja de antiguidades (destaque para Under The Hood, de Hollis Mason, o primeiro Coruja de Watchmen), demonstram quão antiquados eles são considerados pela sociedade em geral. Isto chega a ser explicitado por Bruce Wayne no primeiro debate entre ele e Superman, num comentário claro sobre a tendência fascista e homicida dos heróis do final da década de 1980 e inicio da de 1990: “Depois que as pessoas comuns resolveram que éramos gentis e antiquados demais para enfrentar os desafios do século 21, queriam que seus “heróis” fossem mais fortes e impiedosos.”
E não é nenhuma surpresa o fato de Magog, um dos “heróis” catalisadores da era sombria do Universo DC retratada em Reino do Amanhã, ter o visual claramente inspirado em Cable, herói mutante parrudo, linha dura e violento da Marvel Comics criado por Rob Liefeld, um dos “artistas” de quadrinhos que viraram sinônimo do que houve de pior nas HQs de super-heróis da década de 90.
Superman ou Superditador?
Acima de uma crítica e um alerta ao rumo que os quadrinhos de super-heróis estavam tomando na década de 1990, Reino do Amanhã é sobre como o primeiro e mais conhecido super-herói de todos os tempos lida com este novo mundo desesperançoso, violento e cínico. Depois que a opinião pública passou a apoiar a postura mais extremista dos heróis novatos, que não hesitaram em matar supervilões que há décadas vinham atormentando os heróis veteranos, o Superman decide isolar-se na Fortaleza da Solidão, sem contato com qualquer informação do mundo por 10 anos.
Analisando o flashback que revela a tragédia que levou o Superman a exilar-se, vemos o herói de cabelo comprido, uma referência ao visual que ele usou na década de 1990 após a saga O Retorno do Super-Homem, numa das tentativas de modernizá-lo, que foi muito ridicularizada na época.
Outro detalhe visual que merece ser observado é o preto no símbolo que ele adota após sair de seu exílio autoimposto. É possível interpretar a cor como um sinal de luto pelos amigos de Clark Kent mortos no ataque ao Planeta Diário uma década atrás (mostrado no flashback), e pelos milhares de mortos vítimas da detonação do Capitão Átomo no Kansas, principal motivo do herói voltar a atuar. O fundo preto também pode ser interpretado como um símbolo dos tempos sombrios vividos pelo mundo para o qual retornou. E também é um dos primeiros indícios da atitude menos “solar” e esperançosa, e mais autoritária e irredutível que ele e a Liga da Justiça adotam no decorrer da trama. Além disto, o “S” no peito é mais pontiagudo e menos curvo e flexível, o que pode ser visto como um sinal de seu conservadorismo e sua inadaptabilidade aos novos desafios que encara.
Extrapolando o fato do Superman ter sido o primeiro do super-heróis, aquele que fez nascer os demais, uma espécie de “Zeus”, simbolicamente falando, Waid apresenta-o assumindo uma autoridade paternalista, um veterano que, por trás das atitudes mais enérgicas adotadas para consertar o mundo a qualquer custo (“Quando possível o Superman negocia a paz. Quando impossível ele a impõe…”), deixa transparecer em vários momentos um desespero em recuperar o tempo perdido, e reverter o super-heroísmo imoral do mundo para o qual retorna ao maniqueísmo dos velhos tempos, nos quais tudo parecia mais simples, e o certo e o errado eram mais discerníveis. Esse moralismo um tanto ingênuo exibido pelo herói logo desperta a atenção e a insatisfação dos outros heróis que vinham apoiando-o (“Como um homem com visão telescópica não consegue enxergar o mundo à sua volta?”). As deficiências de sua liderança vão ficando cada vez mais nítidas, assim como seu objetivo idealista de “fazer todo mundo comportar-se como antigamente”. Logo fica claro que os novos tempos exigem uma liderança à altura. E é esta deficiência que a Mulher-Maravilha explora para assumir o papel que acreditava ser do Superman.
O Superman do Reino do Amanhã também é um herói atormentado pela culpa. Ele carrega em sua consciência o peso das mudanças que sua ausência causou no cenário global, o que o faz forçar-se a tomar atitudes cada vez mais questionáveis: “Aqueles de vocês que se aliarem a nós… espontaneamente… terão de ser tão responsáveis quanto poderosos. Terão que se comportar melhor. Aqueles que se recusarem… serão enquadrados.”
Apesar de sua abordagem do herói, Waid preocupa-se em mostrar que o Superman tem consciência de quão duro está sendo, e do quanto teme em tornar-se um déspota tão detestável quanto um de seus maiores inimigos: Darkseid (um temor que é explorado numa das cenas extras que a história original ganhou na versão encadernada, da qual falo mais abaixo).
A Trindade em Conflito
Um dos pontos da trama que desperta atenção é a maneira como Waid e Ross trabalharam a relação do Superman com a Mulher-Maravilha. Por exemplo, a amazona insiste em chamá-lo de Kal, seu nome de nascença, numa forma sutil de incentivá-lo a assumir sua persona mais forte, de origem mais “nobre”, mais “divina”. Enquanto o Superman tenta evitar ações beligerantes, a Mulher-Maravilha, uma guerreira nata, age mais agressivamente. Isto gera um conflito de lideranças, que também leva o primeiro super-herói a refletir sobre qual papel ele deve assumir nesta nova era. Sua hesitação diante do dilema que o confronta nos momentos finais de Reino do Amanhã abre espaço para que a Mulher-Maravilha assuma o comando da Liga e lidere sua equipe na guerra que se inicia no capítulo final: “Kal, gostando ou não, você é um líder mundial… A Liga está cansada de esperar que você assuma esse papel.”
Outra antiga relação que é muito bem explorada pela dupla criativa é a do Superman com Batman, que ganha aqui uma nova configuração. Enquanto vemos um Superman cada vez mais autoritário, somos apresentados a um Batman que preferiu aliar-se a heróis mais “humanos” e menos superpoderosos (Arqueiro Verde, Besouro Azul e Canário Negro, em especial). Não podendo mais atuar fisicamente como o Batman, Bruce usa a Batcaverna como uma nova manifestação física do símbolo que criou, a partir da qual provoca medo nos bandidos e na população de Gotham, ao apresentar-se como uma entidade que transcende o homem que personificava o mito do Batman. No futuro de Reino do Amanhã ele é a mente por trás de uma rede de meta-humanos que o apoiam, metaforicamente servindo como membros de um Batman que tornou-se uma entidade coletiva, num mundo que privou o homem por trás do capuz do uso de seus braços e pernas, resultado de uma vida inteira de luta contra o crime, a qual não poupou seu corpo de sequelas.
E vale atentar para o fato de que a grande maioria dos meta-humanos sob o comando do Batman são filhos de veteranos da Liga da Justiça (algo que fica mais claro nos extras desta edição definitiva), tornando-o uma espécie de pai adotivo deles.
E ao contrário do Superman, que usa uma abordagem mais “exibicionista”, o Batman defende um modo mais “discreto” e sutil de lidar com a problemática da nova geração de “heróis”. Isto também ajuda a contrastar as tendências ditatoriais e fascistas do Superman, à “democracia do medo” defendida pelo Batman, ambas posturas resultantes da distorção de valores sofrida pelos heróis veteranos num mundo que os esqueceu, e preferiu apoiar heróis que prometiam resoluções mais “definitivas” para antigas ameaças e supervilões.
O capítulo final de Reino do Amanhã ainda reserva ao leitor uma batalha tanto ideológica quanto física entre o Batman e a Mulher-Maravilha, sendo ela mais uma demonstração de quão fundo Waid e Ross estudaram e desenvolveram as motivações e diferenças entre os tipos de heroísmo praticados pela “trindade” do Universo DC. Reino do Amanhã é especialmente focado nas diferenças ideológicas dos três a respeito de qual forma é a mais correta de salvar o mundo usando suas habilidades natas e adquiridas.
Quando Heróis e Vilões se Confundem
Toda a sequência passada em Apokolips no capítulo 3 foi um acréscimo feito em Reino do Amanhã quando a minissérie original foi lançada em forma de encadernado. Há ótimas ideias nela, como um futuro Órion, filho do vilão Darkseid, terminando como déspota de Apokolips, e ter se tornado fisicamente mais parecido com a silhueta e o semblante de seu pai.
Mas a visita do Superman a Apokolips serve especialmente para confrontar o herói com uma das possíveis consequências de suas ações mais extremistas para deter a crise meta-humana: um mundo estancado sob o peso de um fascismo superpoderoso, que torna-se dependente de um governante que julga-se superior aos outros de sua “espécie”. Este é um dos pontos da história que retomam uma das questões abordadas em Reino do Amanhã: deve haver um Superman? Estaria ele certo em interferir em seu mundo adotivo?
Outra boa sacada visual é a aparência externa da Gulag, a prisão de meta-humanos: o prédio é totalmente inspirado no QG da Legião do Mal do desenho Superamigos, outro indício da inversão de valores ocorrida no mundo de Reino do Amanhã, no qual os heróis tomam atitudes comparáveis às dos vilões.
E já que mencionei os vilões acima, um dos pontos que chamam atenção na história é o paralelo que ela estabelece entre as maquinações de Lex Luthor e Bruce Wayne. Cada um conduz uma conspiração que envolve a manipulação de grandes heróis do passado que sucumbiram à decadência moral que alastrou-se pelo mundo do super-heroísmo.
Num primeiro momento pode soar surpreendente a decisão tomada por Bruce no final do capítulo 2, mas, quando analisada com mais frieza, ela se mostra bem coerente com a ideologia adotada por ele na trama: defender a soberania dos seres humanos sobre a Terra. O que ele faz ali reforça o argumento de que há uma linha tênue entre o “humanismo” extremista de Luthor e a crença de Wayne nas capacidades humanas de auto-superação, nutrida e praticada por ele em seus anos como o Batman.
Tão perdido quanto a inocência e simplicidade da Era de Ouro dos super-heróis está o Capitão Marvel em Reino do Amanhã. Ele é a personificação da era sinistra que se abateu em seu mundo vive. O herói que escondeu-se na mente de um garoto com corpo de homem, tentando esquecer-se dos traumas sofridos em seus últimos anos de super-heroísmo. Entre os heróis, sem dúvida ele é uma das maiores vítimas do cinismo, realismo e pessimismo que passaram a dominar a maioria das histórias deste mundo outrora colorido, fantástico e inspirador.
Apocalipse e Renascimento
O conflito na Gulag, que marca o clímax de Reino do Amanhã, é outra alegoria que retrata ao que se resumiu a maioria dos quadrinhos de super-heróis na década de 1990: centenas de seres superpoderosos transformando o mundo numa enorme arena de batalhas sem fim, que pouco se preocupavam em tornar o mundo um lugar melhor, mas apenas em disputar embates de força entre si pela supremacia de um modo de “salvar o mundo”.
Entre os embates apocalípticos que se estendem pelas páginas finais, além do retumbante confronto entre o Superman e o Capitão Marvel, destaca-se o momento em que o Batman, herói que sempre preferiu atuar nas sombras, surge num momento crítico do conflito como uma luz de esperança e, claro, seu rápido duelo ideológico com a Mulher-Maravilha.
Mas talvez uma das imagens que mais ressoem do final de Reino do Amanhã seja a que melhor condensa uma das consequências do super-heroísmo inconsequente: Superman, o primeiro super-herói, só em meio às ruínas do legado que ele criou com sua mera presença na Terra. O herói revela-se como o alfa e o ômega da Era dos Superdeuses.
No meio de toda essa tragédia, quem acaba por destacar-se é um homem: Norman McCoy, a testemunha que emprestou seus olhos e impressões ao leitor desde o início. Com a sua crença nos superhomens abalada, coube a ele acompanhar seus passos rumo à perdição, para enxergar a importância deles para o resto do mundo, e resgatar o primeiro deles da descrença e desesperança que o domina. É ele que ajuda o Superman a reencontrar-se, a recuperar o juízo e sua capacidade de julgar: “No minuto em que tornou o super mais importante que o homem… Quando decidiu dar as costas à humanidade… isto lhe custou seu instinto. Sua capacidade de julgar.”
É neste momento que Waid e Ross expõem sua teoria sobre a perda do respeito e da relevância do Superman no mundo dos super-heróis. Para eles, personificados na figura de Norman McCoy, o herói posicionou-se tão acima da humanidade que perdeu a perspectiva humana e o vínculo que possuía com aqueles que jurou defender no início de sua carreira. Um erro cometido por todos os heróis, que passaram conflitar entre si, e esqueceram-se de que mais produtivo e inspirador seria cooperarem para tornar o mundo um lugar melhor.
A consciência desta falta de compaixão gera dois belos momentos de humildade: Batman, Mulher-Maravilha e outros heróis retirando suas máscaras e expondo sua face humana, num sinal de que estão dispostos a unirem-se à humanidade em sua luta para tornar o mundo um lugar melhor; e a Mulher-Maravilha presenteando o Superman com um par de óculos, para ajudá-lo a voltar a enxergar o mundo pelos olhos de um ser humano, e abraçar sua humanidade ao ressuscitar sua persona Clark Kent. Nesta mesma cena a amazona volta a chamá-lo de Clark, algo que só havia feito no início da história.
Usando uma analogia bíblica, a solução proposta por Waid e Ross para renovar a importância dos super-heróis no mundo é a comunhão entre seus lados humano e divino, é fazer com que estes superdeuses se apaixonem pela humanidade, e se sacrifiquem constantemente por ela da mesma forma que um “filho dos céus” sacrificou-se há mais de 2000 anos atrás, assumindo todos os pecados da espécie humana, que a partir deste sacrifício nos inspirou a fazer o bem tanto quanto ele. Uma antiga e bela lição usando as vestes de um mito moderno.
Exclusividades da Edição Definitiva
Além da história principal, esta edição definitiva trás mais de 100 páginas de extras com uma quantidade generosa de informações sobre a produção da obra, incluindo uma entrevista bem elucidativa com Mark Waid; todos os passos da produção de uma página da história; árvores genealógica dos heróis que povoam Reino do Amanhã; ilustrações de Alex Ross para pôsteres de divulgação da minissérie original, capas das várias versões encadernadas, artes exclusivas para camisetas, e para versão literária da HQ, entre muitos outros.
Destacam-se os esboços originais de Alex Ross com comentários sobre a concepção dos principais personagens de Reino do Amanhã. É muito gratificante ter acesso a parte do processo criativo do artista, e muito significativo descobrir que vários dos personagens menores são reciclagens de super-heróis que Ross criou quando era mais jovem, aumentando o valor de Reino do Amanhã ao revelá-la também como resultado de uma paixão antiga de Ross e Waid.
Conhecer o background imaginado pela dupla de autores para personagens que sequer ganharam uma fala ou um momento memorável na trama por meio dos extras, e descobrir que mesmo os personagens menores tiveram conceitos, motivações, histórias e legados elaborados, faz compensar o pouco que vemos deles na história.
Considerações Finais
É inegável o valor artístico e histórico de Reino do Amanhã, que além disto é uma impactante declaração de amor e respeito de Mark Waid e Alex Ross pela elaborada mitologia do Universo DC. E esta edição definitiva se mostra não apenas bela e caprichada, como obrigatória na coleção de qualquer amante de narrativas gráficas, de apreciadores de mitos, releituras bíblicas, ou de qualquer leitor atrás de uma das melhores e mais emblemáticas histórias de super-heróis de todos os tempos. Um investimento muito recompensador.
REINO DO AMANHÃ – EDIÇÃO DEFINITIVA
De Mark Waid (roteiro) e Alex Ross (arte)
[Panini Books, 336 págs., R$89,00 / 2013]
Nota: 10,0