Crítica – HQ: Cumbe, de Marcelo D’Salete

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Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação.

Com sensibilidade, HQ Cumbe mostra resistência de escravos no período da escravidão

Por Paulo Floro

A história dos negros escravos no Brasil sempre foi negligenciada nas artes e com os quadrinhos não é diferente. Por isso que um projeto como Cumbe, do quadrinista e artista plástico Marcelo D’Salete merece ser celebrado. O livro traz histórias no período da escravidão com personagens que resistiram contra a violência da senzala e do modo de vida opressor daquela época.

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Mais do que uma coletânea de histórias bem contadas, Cumbe é parte de um projeto mais arrojado, de compreensão histórica desse período do Brasil. Para isso, Marcelo teve que trabalhar bem tanto a forma como o conteúdo para dar uma dimensão mais próxima da experiência do negro na escravidão.

Ele pesquisou a linguagem falada pelos escravos como forma de trazer mais realismo e ambientação. Deu certo na maior parte, mas poderia ter sido mais ousado nos diálogos. O autor decidiu manter o texto coloquial, próximo da linguagem escrita, mas isso não chega a atrapalhar a leitura. O álbum traz um glossário ao final e apresenta a bibliografia que serviu de base para o autor.

A própria palavra do banto “Cumbe”, que dá nome à obra merece explicação. Ela tanto significa “sol”, dia”, “fogo”, uma maneira de compreender o mundo e também foi usada como sinônimo de “quilombo”.

Nesta HQ que também tem cara de ensaio, Marcelo trouxe um olhar que buscou fugir do lugar comum quando o assunto é a matriz africana. Para começar, Cumbe não se roga em explicitar a violência do período. Mas faz isso de um ponto de vista do escravo, explicitando tanto sua dor quanto a revolta. Ao branco dominador não lhe resta nenhum papel a não ser o da incongruência, daquele que ficou do lado errado da história e que ainda hoje vive benesses de anos de exploração.

Esse tom poderia desbancar para o panfletário, mas Marcelo traz uma sensibilidade que nos isola de qualquer proselitismo. O que está em jogo aqui é uma compreensão de mundo. O traço da HQ, aliado a uma forte carga dramática, consegue criar uma empatia com o leitor, que vivencia por alguns momentos aquela experiência. A história “Sumidouro”, quase sem falas, exemplifica bem isso ao mostrar o sofrimento de uma escrava que se vê privada da maternidade. Na história-título, conhecemos o ensaio para uma revolta.

O mais interessante em Cumbe é que o autor mostra que os escravos não se mostraram passivos, como uma leitura rasa do período pode fazer entender. Mesmo aqueles que não se arriscaram em fugir para quilombos ou se engajaram na luta armada se insurgiram, cada uma à sua maneira, contra essa sociedade pautada pela violência e poder. São pequenas ações e gestos que mostram que a resistência era cotidiana e perene.

Cumbe traz novas compreensões do período da escravidão e nos ajuda a entender esse sistema de dominação e tensões sociais que repercute até hoje.

cumbeCUMBE
De Marcelo D’Salete
[Veneta, 176 páginas, R$ 29,90]

Nota: 9,0