FILHO DE LADRÃO
Christian Morales e Luís Martínez; baseado na obra de Manuel Rojas
Veneta, 248pp, R$ 74,90, 2021. Tradução de Marcelo Barbão e Rogério de Campos
Quando foi lançado em 1951, Filho de Ladrão, do argentino Manuel Rojas (1896-1973), conquistou um espaço central na literatura latina ao fazer de sua narrativa um apanhado de questões centrais do continente – a opressão do capital, a violência policial, o descaso do Estado. Questões essas, inclusive, que seguem bastante atuais. Seu personagem principal, Aniceto Hevia, tornou-se ao longo dos anos uma espécie de arquétipo consciente do indivíduo latino oprimido. Miserável e sempre em movimento, vivendo basicamente pela própria sobrevivência e abaixo da ordem social que exclui os tais “tipos indesejados”, Aniceto nunca se cansou de se opor às adversidades. Entre uma e outra ida à prisão, quase morto pela fome, sempre se mostrou contrário às injustiças e conservou uma imensa vontade de viver.
A obra conta a história de Aniceto, o filho de um dos mais famosos ladrões espanhóis. Após a prisão de seu pai e a morte de sua mãe, ele vivencia a desolação do abandono ao lado dos irmãos, até decidir encarar, sozinho, a vida nas ruas. Nas suas andanças em busca de sobrevivência, mas também movido por um sentimento de esperança e liberdade, ele cruza diversas fronteiras e vivencia toda sorte de provações, em busca de trabalho, sempre em contato com os tipos invisíveis, nômades urbanos, homens e mulheres que vivem à margem da sociedade.
Esta adaptação em quadrinhos, dos chilenos Christian Morales (roteiro), Marcos Herrera (diálogos) e Luís Martínez (ilustração), revitaliza o espírito da obra de Rojas, que ganha um componente visual que só aumenta o assombro de sua narrativa. Com um estilo quase expressionista, marcado pelas rachuras e sombras à lápis, com um polimento áspero, o desenho de Martínez nos passa uma sensação de desolação constante. As descrições lúgubres da obra original misturadas à poética muito original do texto de Rojas ganhou uma tradução visual à altura nesta HQ.
Mas o maior feito do quadrinho é manter vívida a figura de Aniceto Hevia. A dupla fez um trabalho minucioso nesta adaptação para que o protagonista mantivesse o seu contorno de personagem-símbolo, de enorme carisma em seus infortúnios e sentimento de resiliência. A experiência de Hevia e sua atitude em relação às injustiças que sofreu ressoam com força nos dias atuais, em um mundo cada vez marcado pelas desigualdades sociais.
Ao longo das páginas vamos ficando cada vez mais próximos do personagem, em uma sensação de imersão tão grande que parece que estamos ali, naqueles ambientes de miséria, o que é reforçado pelas escolhas inteligentes de enquadramento e perspectiva. As cenas nas prisões são sempre mostradas em requadros pequenos para reforçar a claustrofobia. O mesmo acontece no interior dos cortiços e habitações precárias que os personagens volta e meia vivem. Já as cenas das andanças vão na direção oposta, com a paisagem denotando o sentimento de liberdade (e, por vezes, abandono). “Viver, irmão. Que outra coisa há para se fazer?”.
Rojas foi um autor comprometido com a ética da denúncia social, que perpassou suas obras e seu trabalho como jornalista. Quando lançou Filho de Ladrão, o autor já possuía certo nome na cena literária chilena, mas foi com essa obra que atingiu o prestígio internacional. Anarquista, ele colaborou com diversas publicações revolucionárias na Argentina e no Chile e teve uma produção literária extensa, com poemas, contos e ensaios até o fim da vida.
Filho de Ladrão, o livro, marca um novo momento na literatura chilena pelas inovações que trouxe à narrativa literária do país. Se afastando do naturalismo até então em voga até aquele momento, o livro trouxe um personagem que era até então invisível na literatura, apesar de fazer parte da paisagem urbana dos países do continente há várias décadas. A obra também ousava ao trazer uma polifonia de vozes e diferentes perspectivas ao contar a história: acompanhamos as memórias de Hevia e de seus companheiros de viagem, amigos, mas também adentramos ao consciente desses personagens, em uma mistura dinâmica de abordagem objetiva dos fatos e de reflexões sobre esses fatos.
A HQ consegue manter essa narrativa fluida, que vai e vêm, ao mesmo tempo em que se mantém firme na epopeia de Aniceto Hevia, que percorre diferentes países da América Latina ao longo da vida. Os autores foram rigorosos no objetivo de se manterem fieis aos detalhes de cada ambiente, expressões dos personagens e acontecimentos, um trabalho criativo árduo que se mantém à altura da importância do livro de Rojas. Ao final desta edição da Veneta há um pouco de como foi feito esse processo, com os bastidores da adaptação e esboços dos personagens.
Mas o quadrinho, enquanto obra artística isolada, também têm seus méritos dentro do meio. As soluções visuais que os autores encontram para lidar com os momentos mais poéticos do livro são impressionantes. Chama atenção também o trabalho incrível de caracterização dos personagens e como seus contornos à lápis vão ganhando tons caóticos de acordo com os sentimentos expressados, quase chegando ao nível dos garranchos. Puro impacto visual, mas também bastante empatia.
FILHO DE LADRÃO
Christian Morales e Luís Martínez; baseado na obra de Manuel Rojas
Veneta, 248 pp, R$ 74,90 / 2021
Tradução de Marcelo Barbão e Rogério de Campos
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